O direito internacional e suas cortes não admitem a autoanistia, daí a razão de o Brasil estar condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Alguns dos que repetem, pueril ou senilmente, essa asneira de reciprocidade da Lei da Anistia o fazem em defesa própria, pois temem que os colaboradores da repressão também sejam criminalizados.
Em que conjuntura se deu a lei, senão ainda quando um Congresso era composto por senadores biônicos, tesouras da censura afiadas, fuzis engatilháveis, bombas armadas no clarão de alguns quartéis e colocadas até em bancas de jornais, e, especialmente, com uma mídia comprometida até a medula com o golpe e a ditadura? Essa, inclusive, ajudou a difundir a corruptela jurídica sobre a interpretação de crimes conexos.
Uma excrescência à doutrina jurídica e uma vergonha à inteligência nacional. Mesmo assim, a lei aprovada o fora pela diferença de míseros 5 votos, o que em definitivo desconstrói a existência de pacto.
O conceito de crimes conexos, Art.76 do Código de Processo Penal, não agasalha em nenhuma hipótese a anistia ao torturador. E se for interpretado leigamente ou na capciosidade dos juristas-ideólogos da ditadura, o parágrafo 1º (Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política), teria força para passar por cima do conceito estabelecido pela legislação penal? E os "crimes de qualquer natureza" estariam recepcionados pela Constituição, que considera a tortura um crime imprescritível? Mesmo que admitisse tal anomalia, encontraríamos o 2º parágrafo (Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal), e,portanto, nos crimes de qualquer natureza excetuam-se os mencionados.
Ora, se é recíproca, os agentes da ditadura cometeram sequestro, terrorismo e atentado pessoal. Não foram condenados porque não foram julgados, mas com as verdades já reveladas as provas são irrefutáveis. Essas graves violações aos direitos humanos ocorreram desde o primeiro dia do golpe e também após a Lei da Anistia.
Por fim, a pá de cal: o Estado não pode se autoanistiar. Se possível fosse, não seria punível, bastaria a ele, Estado, fazer lei perdoando a si mesmo. O direito internacional e suas cortes não admitem a autoanistia, daí a razão de o Brasil estar condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Enquanto não cumprir a determinação de revisar a legislação estará como um fora da lei.
Há dois caminhos: o da revisão, via Congresso, colocando um parágrafo no qual rezará que os crimes de lesa-humanidade não estão contemplados; e o da reinterpretação da lei pelo Supremo Tribunal Federal. O via Congresso corre risco de parar no STF, por arguição de que sendo uma revisão não retroage e não alcançará os criminosos de lesa-humanidade. Esse caminho pode se constituir em uma armadilha. Portanto, o caminho último e bem viável é nova arguição ao STF, patrocinada pela OAB e apoiada pelas entidades engajadas no movimento por memória, verdade e justiça, cuja composição é diferente da de 2010 quando sustentou a tese do pacto. O timing, a nosso juízo, é logo após as eleições.
Que se opte por um caminho ou outro. O que o Brasil não pode é manter a ditadura de uma conjuntura, pois seria o mesmo que manter a força da tirania no devir da história.
*Francisco Celso Calmon é coordenador nacional da Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça.
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