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domingo, 5 de maio de 2013

QUANDO OS CORONÉIS TREMERAM…



Por Memélia Moreira

Segue aqui minha homenagem a líderes indígenas que escreveram e ainda escrevem a história da resistências dos povos dominados: Mário Juruna, Raoni, Aniceto Tsvadzére, Celestino Xavante, Arutana, Modesto Terena, Maluwaré, Híbes Menino, Bedjai, Kokrid Panará, Ângelo Kretã, David Kopenawa Yanomami, Krumari, Marçal Tupã-í, Kremuro, Pio Suruí, Getúlio Krahô, Pio Tapirapé, Daniel Matenho Cabixi, Álvaro Tukano, Marcos Terena. Todos eles, em algum momento, frequentaram minha casa e me deixaram um legado para a vida.

Já é madrugada de uma fresca primavera nessa tórrida Flórida, que flerta à distância com minha América, a América do Sul, piscando seus olhos de cobiça sobre o Caribe. Entre saudades das filhas e neta, da família e dos amigos, leio as notícias da recente ocupação do canteiro de obras da faraônica barragem de Belo Monte. A repressão, a censura, a tentativa de esmagar povos que defendem sua própria sobrevivência e a sobrevivência do planeta me fazem lembrar tantas outras resistências e o dia em que os coronéis da ditadura tremeram. De medo.

Era noite de domingo, quatro de maio de 1982. Estava em casa com minhas filhas, ainda crianças, quando o telefone toca. Do outro lado da linha uma voz conhecida diz “venha aqui pra casa agora. Temos uma reunião de emergência. E você vai ter que viajar hoje à noite”. Respondi ser impossível porque não tinha com quem deixar minhas filhas. E então a voz, responde “estamos mandando alguém para ficar com as meninas”.

A reunião era na casa de Cláudio Romero, antropólogo e indigenista. Um combatente. Havia outros indigenistas e funcionários na Funai. Conspirávamos. Foi quando decidiram ser eu a “pessoa certa” para uma missão delicada e quase arriscada. Fui designada, por ser jornalista de um importante veículo (Folha de São Paulo), a escoltar um ônibus que transportava 60 índios do povo Xavante. E eles estavam pintados de vermelho. Só exigi levar o fotógrafo que sempre me acompanhava. Concordaram. Embarquei no bravo fusquinha AD-1715, sem carteira de motorista, documento que só tirei depois dos 50 anos. Sem mapa, porque conheço os caminhos que me levam à Amazônia, segui viagem.

Já era tempo de frio nos sertões de Goiás. O encontro foi marcado no trevo de São Luís dos Montes Belos. E lá nos esperava o saudoso Antonio Moura, jornalista do Porantim.

A madrugada esfriava cada vez mais. O jeito era recorrer a uma cachaça para não congelar dentro do carro.

Ser mulher e ter a ousadia de entrar num restaurante de beira de estrada, às 3 da manhã para pedir uma “azuladinha” é igual brincar na montanha-russa. Mas, alertada por Guimarães Rosa, sei que viver é perigoso. Muito perigoso. Tomei uns goles e até exorbitei, puxando conversa no balcão.

Pelas quatro da manhã, surge nosso ônibus. O fotógrafo dormia no carro, Moura tentava se concentrar na matéria que escreveria, enquanto eu fumava um charuto, planejando o quê dizer se fôssemos interceptados pela Polícia Federal. Foi para essa tarefa que me convocaram. Tinha que levá-los a Brasília. E cumpriria a missão.

Extasiada com o espetáculo do alvorecer, que nos sertões do Goiás na época da seca leva qualquer um à poesia, acompanhei o ônibus. As barreiras policias de um país sitiado pela ditadura não se movimentaram. Chegamos a Brasília por volta das sete da manhã. O destino era o centro de estudos mantido pelos jesuítas, ao norte da cidade.

Voltei para casa. Precisava tomar um banho, sentar à mesa do café da manhã com minhas filhas e, descansar um pouco. Foi pouco mesmo. Elas foram para o parquinho. Às nove da manhã, quando mal começava a dormir, o chefe de redação do jornal telefona: “Memélia, vá direto para a Funai. Os índios cercaram o bloco A do Setor de Autarquias Sul. Há um batalhão de choque da PM. Mas, toma cuidado.” Que saudades dos chefes que tanto me conheciam.

Em menos de 15 minutos e com uma xícara de café forte na mão, já estava no fusquinha. E nem precisava me apressar. Afinal de contas, só Antonio Moura, e eu, tínhamos a história completa. Mas jamais perderia um minuto daquele dia.

O prédio borbulhava. Na calçada da entrada principal, 180 policiais militares com capacete, escudo, cassetete, armas no coldre, esperavam a ordem para atacar. Lá dentro, o pandemônio.

Aos 60 xavantes se juntaram mais 40 de 16 etnias diferentes. Pankararu, Makuxi, Suyá, Karajá, Kaingang, Terena, Nambiquara, Trumai, Parakategê, Guarani, Kaxinawá, enfim, todos os índios que estavam em Brasília reivindicando seus direitos se uniram naquele momento de resistência.

O presidente da Funai era o coronel João Carlos Nobre da Veiga. Naquele mesmo ano ele foi envolvido no escândalo da Capemi (lembram do caso Baumgarten, do travesti Polica e do coronel Newton Cruz? Pois é) e na venda ilegal de madeira derrubada para a construção da farônica e inútil hidrelétrica de Tucuruí. Nobre da Veiga presidia a Funai, vendia madeira de terra dos índios, ia a Paris dançar bolero no “Le 78” e ainda comandava outros 19 coronéis todos com altos salários empoleirados em “funções de confiança”.

Do seu time, figuravam os coronéis da Aeronáutica, Roberto Guaranys, do grupo que queria explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro. A explosão serviria para endurecer o poder militar que vinha perdendo suas forças. E também o coronel Ivan Zanoni Hausen, conhecido como “doutor da mata” nas sessões de tortura contra os guerrilheiros do Araguaia. Um circo de horrores.

No oitavo andar, ocupado pela Funai, gavetas eram esvaziadas, processos do DSI (Departamento de Segurança e Informação) rasgados e atirados pela janela. Os muitos servidores que eram subservientes e cúmplices dos coronéis se encostavam pelas paredes, olhos arregalados de medo, sem bússola, sem proteção dos chefes, sem saber o quê fazer.

Com pouco mais de um metro e meio de altura e medalha no peito por ter combatido nos campos da Itália durante a II Guerra Mundil, o coronel Nestor andava de botas de montaria dentro da Funai. Sem qualquer razão específica agredia índios, jornalistas e qualquer um que se atrevesse a cruzar seus passos barulhentos. Ele foi içado por quatro índios. Carregando o coronel, entoavam a contagem regressiva. “3..2…” Iam jogá-lo pela janela. Cheguei no exato momento em que o coronel, com voz de caniço rachado e chorando, gritava pedindo ajuda. “Ezequias, Ezequias, me socorre”. Ezequias era nada menos do que meu querido amigo. O Xará de todos nós, um resistente que, por sua generosidade e senso político, evitou a cena com uma cabeça de coronel virando farinha suja de sangue no asfalto do estacionamento…

Eu subia e descia os oito andares do Bloco A. Cheguei à porta principal e o coronel Hausen, cabelos eriçados, em total desespero, me pergunta, “o que é que se pode fazer”. Com o mais singelo sorriso (e uma vontade imensa de dizer “que se danem vocês”) respondi, “só resta negociar, coronel”.

Rodeado por seus seguranças, Nobre da Veiga, o presidente, homem irritadiço que quando perdia a paciência puxava a perna da calça até chegar à altura do joelho, e depois desenrolava até o tornozelo, ouve o coronel Hausen e pergunta se eu podia ajudar. Assumo imediatamente a famosa “neutralidade jornalística” e digo, “coronel, não posso fazer nada. Vim aqui só para fazer matéria para meu jornal”.

Que maravilha devolver aos dominadores os mitos que eles criaram para sufocar os povos que se levantam!

Os boatos começam a circular. “Mandaram prender Cláudio Romero”. Ou, então “Odenir está preso”. Odenir Pinto de Oliveira é indigenista, apelidado “Xavantão”. Xavante mesmo. Mestiço. Criado em aldeia, fala a língua do seu povo tão bem quanto fala a língua portuguesa.

Já perto de meio-dia, o chefe xavante Aniceto Tsvadzére vai ao encontro dos policiais. Para em frente de cada um e diz as mesmas palavras. “Quando nós recebemos vocês na nossa terra, nós não mandamos guerreiro com arma para assustar vocês. Estamos aqui só para lutar pelos nossos direitos”. E apertava a mão do soldado. Foram 180 aperto de mãos. Aniceto era o diplomata do seu povo.

A situação continuava em descontrole. A essa altura, a imprensa internacional já subia e descia as escadas, câmeras no ombro, pedindo tradução das palavras de ordem, também assustados com os gritos e os corpos dos índios pintados de urucum.

Odenir e Cláudio Romero chegam. Para não receberem voz de prisão, entram protegidos por deputados do PMDB. Dante de Oliveira, que depois apresentou a emenda constitucional pelas eleições diretas para presidência da República, vinha na frente do grupo. Todos de braços dados.

Faz-se a negociação.

Volto para minha Olivetti e descrevo, com detalhes, o dia que começara na noite de quatro de maio e se estendera por todo o dia 5. Matéria de primeira página de todos os grandes jornais do país.

Vou para casa levando cinco índios que passaram a noite tramando a nova ocupação. Ela aconteceria menos de 12 horas depois. Minhas filhas dormiram na minha cama, aconchegadas ao meu corpo para matar as saudades da mãe sempre ausente. E, na biblioteca, armamos redes para os hóspedes insones.

Aquela foi a primeira ocupação de uma propriedade do Governo. Uma ação inédita que depois se repetiria pelo Brasil ao longo das resistências.

Por que será que tantas lembranças turbilhonam minha cabeça nessa madrugada de cinco de maio? Por que não jogar essas lembranças no fundo da arca? Porque Belo Monte, essa hidrelétrica planejada pelos ditadores do regime militar e executada por um Governo que prometia mudar a história dos povos deserdados, é a refilmagem de um momento que vivi e que se repete como um pesadelo contínuo. Porque as cenas da ocupação dessa obra criminosa, que vai destruir meu mágico Xingu são o testemunho mais vivo de que a luta na defesa da sobrevivência humana será prolongada. E só derrotaremos o seleto grupo de convidados para o banquete quando as palavras de Giuseppe Tomasi, duque de Palma, príncipe de Lampedusa, – “se queremos continuar como está, vamos mudar para que nada se transforme”- , enxovalhada pelo excesso de uso, seja atirado ao lixo não-reciclável da História. Caso contrário, o desabafo feito por David Yanomami, perplexo e triste, sentado no sofá da minha sala será citada como profecia: “Eles fazem tanto buraco no chão para buscar ouro que um dia a terra vai cair porque a riqueza do fundo da terra é que segura o mundo para não despencar tudo”.

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