Lixo e pão - Por José Aldemir*



Qual a relação entre lixo e pão? O que há em comum entre palavras aparentemente tão dispares? À primeira vista pensa-se logo na utilização do lixo como meio de se obter o pão de cada dia. Na sociedade contemporânea, a cada ano aumenta o número de pessoas que retiram do lixo seu sustento, e o pior, segundo estudos recentes, os filhos de pais que trabalham no lixo tendem a permanecer na mesma condição. No dicionário a palavra lixo está relacionado a sujeira, imundice, coisa ou coisas inúteis, velhas, sem valor, ou de modo figurativo a camada mais baixa da sociedade, escória, ralé.

Já o pão ocupa um lugar especial na vida das pessoas, é o símbolo de toda espécie de alimento e de todo esforço necessário para consegui-lo. Deus disse a Adão: “com o suor de teu rosto, comerás teu pão”. Mais importante do que o lixo e o pão são as pessoas que trabalham com um e com o outro, e é disso que trata esta crônica.

Hospedara-se recentemente no apartamento de um parente em São Paulo quando tocou a campainha. Como não havia informação da portaria de que chegara visita, antes de abrir a porta indaga: quem é? A resposta – é o lixo! – Como? Desculpe-me, não entendi, quem é? A resposta foi rápida e direta – é o lixo!

Sem saber o que fazer, abre a porta e depara-se com um Senhor de meia idade, trabalhador do prédio e responsável pela coleta de lixo. Constrangido, autoriza-o entrar e informa que os donos do apartamento não estão e que não sabe onde está o lixo, ao que ele responde que passará depois. Ao recuperar-se do susto, indaga àquele Senhor – qual o seu nome? Justiniano, seu criado, responde. Novamente o constrangimento pelo “seu criado” e insistiu: – Por que não diz o seu nome ao tocar a campainha? – Porque ninguém me conhece pelo nome e todas às vezes em que perguntavam quem é e eu respondia Justiniano insistiam na pergunta e só abriam a porta quando eu falava “é o lixo”. Desiste de continuar a conversa, o Senhor agradeceu e foi tocar a campainha do apartamento ao lado.

Rubem Braga escreveu uma crônica em 1960 sobre um homem modesto que vinha entregar o pão a sua porta e que para não incomodar os moradores, avisava gritando: – “não é ninguém, é o padeiro”. E descreve como ele teve a ideia de gritar aquilo. “Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era e ouvir a pessoa que atendera dizer para dentro: não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.

Pode-se chamar isso de invisibilidade psicossocial que é um misto de humilhação e subalternidade social. As pessoas parecem invisíveis, porque só se enxerga sua função, quando se trata de atividades consideradas insalubres. É como se elas não existissem. Essa atitude é provocada pela extrema banalização de algumas atividades diárias pelo fato de tais pessoas estarem sempre por aí quando delas ou de seus serviços precisamos. Ao contrário daquelas funções tidas como mais nobres e que são sempre ligadas ao nome de quem as exercem.

A esses dois brasileiros descritos em tempos tão distantes (num intervalo de 43 anos) nada se coloca a favor deles. São tão invisíveis que não estranham essa condição. No máximo nos compadecemos deles numa distância em que a curiosidade do olhar humano já não os alcança. Eles expõem as entranhas da contemporaneidade urbana, colocam às claras as desigualdades e o fosso social. Isso não é novo, porém é preciso buscar a mudança, não uma mudança qualquer, mas a transformação da relação entre as pessoas e do sentido da solidariedade humana.

Os mais simples não necessitam de piedade – isso não os aproxima de seus semelhantes, necessitam é de cidadania. Para tanto, é necessário reinventar a vida.

* Dr, José Aldemir de Oliveira é Reitor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

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