Quando a Companhia das Letras anunciou o lançamento do livro de memórias do cacique Raoni Metuktire, muitos imaginaram que o trabalho se limitava a um registro de relatos de um dos mais célebres líderes indígenas do planeta. Mas, por trás das páginas, o processo foi um ritual de tradução cultural, política e espiritual conduzido pelos próprios netos do cacique — Paimu Muapep Trumai Txukarramãe, Patxon Mẽtyktire e Beptuk Metuktire.
Mais do que tradutores, eles foram mediadores entre dois mundos: o da língua mẽbêngôkre, carregada de ancestralidade, e o português, língua da sociedade envolvente. “Nosso avô é um museu de conhecimento”, afirmam logo no prefácio.
Na tradição Mẽbêngôkre, a palavra dos anciãos pertence às futuras gerações. Cabe aos netos ouvir, aprender e retransmitir. Foi exatamente o que ocorreu. As memórias de Raoni, registradas em entrevistas conduzidas em aldeias como Piaraçu e Mẽtyktire e em cidades de Mato Grosso, foram transcritas e traduzidas pacientemente pelos jovens.
O desafio era monumental: como traduzir termos de parentesco, cantos ancestrais e conceitos que não encontram equivalentes diretos no português? Muitas vezes, a equipe ouvia e reouvia gravações. Outras vezes, precisavam consultar anciãos para identificar de quem Raoni estava falando. “Era como se o cacique tivesse aberto o pensamento do nosso povo para o mundo, e nossa tarefa fosse traduzir esse pensamento”, relatam.
A experiência ultrapassou o campo acadêmico. Durante uma revisão, enquanto liam o trecho em que Raoni lembrava a picada de uma cobra, serpentes surgiram em torno da casa onde trabalhavam, em Teresópolis. Em outra ocasião, um dos netos, Patxon, adoeceu após revisar passagens sobre doenças. Para eles, não eram coincidências, mas manifestações do poder da narrativa do avô, profundamente conectada com a espiritualidade.
O processo envolveu também pesquisa documental, confronto de versões históricas e a colaboração do antropólogo Fernando, chamado por eles de “ikamy”, irmão. A rede de parentesco se expandiu: outros netos e netas participaram das entrevistas, da tradução, da gravação de áudios e vídeos e do mapeamento dos territórios mencionados por Raoni.
Essa multiplicidade de vozes garantiu não apenas a fidelidade ao pensamento do cacique, mas também a adaptação necessária para que o leitor não indígena pudesse compreender as memórias. Foi preciso transformar “akwàtyj”, termo que em português pode ser tia, avó ou bisavó, em uma versão inteligível para o público. Cantos de vitória, de chegada, de cura ou de orientação — cada um com seu peso espiritual — também ganharam forma escrita.
“Quando você ouve Raoni, você fica forte, por isso este livro nos fortalece”, afirmam os netos. Mais que uma autobiografia, a obra é um ato político e espiritual: revela a trajetória de um líder que viveu entre a aldeia e o mundo globalizado, que se tornou símbolo da defesa da floresta e da luta indígena.
Ao final, a mensagem de Raoni ecoa como convocação: lutar pela terra, pela floresta, pela memória e pela paz. “Façam como eu, partam para sua missão, cumpram a sua missão e depois voltem para casa. Nunca se esqueçam da nossa origem.”
Publicar as memórias de Raoni é mais do que registrar a vida de um homem. É abrir caminho para que gerações — indígenas e não indígenas — possam se nutrir de sua visão. Um gesto coletivo, feito por netos que não apenas traduziram o avô, mas reinventaram a tradição oral como livro, sem perder a força da palavra.
Por: João Guató.

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