Por: Selvino Heck*
“Tem que haver mudança em toda sociedade/ Essa luta é nossa, é a luta do povo/ É nos quilombos que se constrói um Brasil novo”. Foi assim, cantando, que Xifronésia dos Santos, quilombola, presidente do Consea-SE, se expressou em nome dos povos e comunidades tradicionais – quilombolas, povos de terreiro, extrativistas, ribeirinhos(as), pescadores(as) artesanais, caiçaras, pantaneiros (as), geraizeiros (as), caatingueiros (as), vazanteiros (as), marisqueiros (as), seringueiros(as), faxinalenses, comunidades de fundo de pasto, pomeranos(as) e povos ciganos – na mesa de encerramento da 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Salvador, Bahia, de 7 a 10 de novembro, com a presença de 1626 delegados e delegadas da sociedade civil e governamentais de todo Brasil, 400 convidados nacionais e estrangeiros de todos os continentes.
A Conferência teve como tema central “Alimentação adequada e saudável: direito de todos”, e envolveu mais de 75 mil pessoas, representantes de 3.000 municípios, em todo seu processo de preparação. A Conferência foi um retrato do Brasil, com a presença e participação de representantes dos povos e comunidades tradicionais, indígenas, funcionários públicos, gestores, moradores de rua, mulheres, militantes da causa da segurança alimentar e da economia solidária, educadores populares, pequenos agricultores, sem-terras, conselheiros e conselheiras da saúde, da educação, do meio ambiente, num grande mutirão para assegurar a todos os brasileiros e brasileiras, no século XXI, uma alimentação adequada e saudável e, mais que tudo, o alimento como direito, agora consagrado no artigo 6º da Constituição.
Maya Takagi, secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), resumiu a Conferência como “quatro dias muito intensos, de muitos trabalhos, mas que construímos com colaboração, dedicação, organização e paciência”.
Uma declaração política foi aprovada por unanimidade no final da Conferência. Nas palavras do presidente do Consea, Renato Maluf, “o texto apresenta a Conferência nacional e seus resultados para vários públicos: os envolvidos na mobilização social, governos nos três níveis – federal, estadual e municipal – e a sociedade brasileira, inclusive quem não sabe nada sobre direito à alimentação”.
Nas palavras de Naidison Batista, presidente do Consea-BA, “o documento vem de cada comunidade, de nossas lutas e foi culminando para chegar aqui. É resultado de construção coletiva, porque veio das nossas práticas e das nossas conferências. Celebramos conquistas e rememoramos algumas amargas derrotas”.
Diz o documento: “Afirmamos que todos os sete bilhões de habitantes do planeta têm direito à alimentação adequada e saudável todos os dias e a estarem protegidos contra a fome e outras formas de insegurança alimentar e nutricional. A capacidade de acesso a essa alimentação é limitada ou nula para um bilhão de pessoas, três quartos dos quais vivendo no meio rural. O modelo hegemônico de produzir, comercializar e consumir os alimentos e os instrumentos de sua regulação não tem sido capaz de assegurar esse direito e deve ser transformado. Apesar do enorme aumento da capacidade de produzir alimentos no mundo, vivemos a inaceitável situação de não ter a fome erradicada da face da terra, ao mesmo tempo em que arcamos com os impactos socio-ambientais e de saúde desse modelo hegemônico de produção e consumo”.
Prossegue: “A Conferência reafirma a necessidade de profundas alterações na ordem internacional que regula a segurança alimentar e nutricional, por meio do fortalecimento do Sistema das Nações Unidas e dos espaços multilaterais com ativa participação das organizações da sociedade civil, como o Comitê Mundial de Segurança Alimentar. Todos os países devem buscar e ter asseguradas as condições de formular políticas nacionais soberanas e igualmente participativas, voltadas para a promoção do direito humano a uma alimentação adequada e saudável. Esses devem ser os principais objetivos da cooperação internacional, principalmente entre os países em desenvolvimento, reforçando o papel da FAO”.
A Conferência reconhece e valoriza “o significativo avanço já conseguido no Brasil na mobilização social pela soberania e segurança alimentar e nutricional, assim como na formulação e implementação de políticas públicas intersetoriais e participativas, que permitiram reduzir a miséria e ampliar o acesso de alimentos. É necessário seguir aprofundando a democracia em nosso país e o processo de desenvolvimento com distribuição de renda, com participação e controle social na elaboração, execução, monitoramento e avaliação das políticas. O caminho que vem sendo trilhado pelo Brasil é hoje reivindicado nas praças públicas do mundo pelas populações contrárias à continuidade de políticas que privilegiam uns poucos e promovem a concentração de renda. Com eles, solidarizamo-nos com nossos corações e mentes”.
A Conferência exalta a trajetória do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a ação da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que “permitiu que se cumprisse a decisão presidencial de chegarmos ao 1º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: “As ações previstas no Plano e outras iniciativas relacionadas com a segurança alimentar nutricional, contando sempre com a participação das organizações da sociedade civil, cumprem papel central na realização dos objetivos previstos no Plano Brasil Sem Miséria”.
Mas há desafios, “decorrentes de nosso histórico de desigualdade social, das marcas deixadas pelo autoritarismo no Estado brasileiro e de um sistema político que limita a representação democrática”, entre os quais “o modelo agrícola concentrador de terra, pela monocultura intensiva em agrotóxicos e os riscos da utilização dos transgênicos”.
E propõe: “É preciso promover novas bases para um modelo de produção e consumo no Brasil, baseadas nos princípios da soberania alimentar, sustentabilidade, justiça social e climática e participação social”. Assim como “avançar imediatamente na concretização do direito à terra, dos programas de Reforma Agrária (...), na garantia dos direitos territoriais e no acesso à terra e recursos naturais para os povos indígenas”.
Por fim, a Conferência, através de sua declaração política, afirma os seguintes princípios fundamentais: “A alimentação adequada e saudável, como direito humano fundamental e universal de todos e todas e como obrigação do Estado; a soberania e a segurança alimentar e nutricional como eixo estratégico do desenvolvimento sócio-econômico do país; a participação da sociedade civil; o fortalecimento do papel regulador do Estado; a intersetorialidade na concepção e gestão das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional; o respeito e a garantia dos princípios do etno-desenvolvimento como eixo orientador das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional".
O parágrafo final diz: “Reafirmamos que o futuro do Brasil e do mundo depende do aprofundamento da democracia participativa e redistributiva, para assegurar o direito humano à alimentação adequada, a soberania e segurança alimentar e nutricional”.
Tinha, pois, inteira razão o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, quando disse na fala de encerramento: “A contribuição que essa Conferência traz será levada a Brasília, como as questões da água, agrotóxicos, agroecologia, indígena, agrária. Queremos permanentemente manter esse diálogo, essa relação que só faz reafirmar esses projetos”. E terminou: “Que inveja de vocês! Quando cheguei, vocês estavam cantando ‘Caminhando e cantando’... E me perguntei: o que eu estava fazendo nesta semana que não estava aqui nestes quatro dias? Que todas e todos voltem para seus estados revitalizados e entusiasmados com o nosso projeto, para que cada cidadão tenha o seu direito respeitado e a sua cidadania garantida. E viva o povo brasileiro!”.
* Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República
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