Por: Egydio Schwade
“…os índios viajaram dois dias por igarapés, igapós, chavascais arrastando canoa, com o pessoal doente – eu inclusive participei desta viagem e ajudei a puxar canoa – tudo para receberem a esmola de uma consulta médica. No entanto, o médico não compareceu – e pelo que acabei de saber, o canalha estava numa festa que os “grandes” da cidade promovem de 15 em 15 dias. Festas em suas casas para não se misturarem com a “ralé” que freqüenta o clube’’ – desabafou Doroti de Surucuá / Lábrea, Rio Purus no dia 9 de maio de 1977.
Doroti veio para a Amazônia em 1975, através da Operação Anchieta – OPAN, hoje Operação Amazônia Nativa. Após trabalhar um ano como professora em Novo Horizonte – Noroeste de MT, em inícios de 1976, foi escolhida coordenadora do Conselho Indigenista Missionário da Amazônia Ocidental (CIMI), que compreendia então o Acre e as dioceses de Humaitá e Lábrea no sul do Amazonas. A enorme extensão do território não intimidou Doroti a ir à procura de remanescentes de povos indígenas nos rios Acre, Purus, Madeira e afluentes. Trouxe às sedes das Prelazias e ao CIMI Nacional a primeira notícia da sua existência perdidos ou escravizados em seringais. No Acre visitou pequenas comunidades indígenas de Jaminawa, Mantineri, Kulina (Madiha), Kaxinauá, Katuquina, Poyanawa e Kampa (Aschanika). E no Sul do Amazonas, Purus, Madeira e seus afluentes, visitou grupos de Jamamadi, Paumari, Apurinã, Jaraowara, Kanamati, Pirahã, Mura, Parintintim entre outros.
Trouxe ao CIMI e às Prelazias as primeiras notícias da existência de diversos povos desconhecidos até então. Assim, dos Zuruahá, num igarapé trIbutário do Rio Tapauá. De um grupo existente na margem direita do Baixo Rio Purus possivelmente fugindo da construção da BR-319. De um grupo Kampa, no alto Rio Envira, afluente do rio Juruá, fronteira com o Peru e de um grupo do povo Juma, sobrevivente de massacres do Médio Purus.
Para localizar as comunidades indígenas remanescentes e organizar a pastoral do CIMI nas quatro prelazias, enfrentou a solidão, viajando dias, noites e semanas, quase sempre sozinha, em barcos das Prelazias ou de “marreteiros” (comerciantes dos rios amazônicos).
A falta de recursos financeiros nunca impediu Doroti de empreender suas viagens. Em setembro de 1977 foi à diocese de Coari, para comunicar ao Bispo que faria o levantamento da situação indígena no Baixo Rio Purus. O bispo, D. Gutenberg, sentindo a sua situação ofereceu-lhe espontaneamente certa quantia para a viagem até à prelazia vizinha de Lábrea. Doroti fez o levantamento da foz do Purus até Lábrea, viajou até Goiânia onde participou da Assembléia Nacional do CIMI e voltou de ônibus, via Acre, ao rio Purus. Em Boca do Acre fez o relatório de viagem e agradece a D. Gutenberg: “o dinheiro ofertado foi mais que suficiente. Deu inclusive para chegar até Goiânia. Agradeço a generosidade”.
Hoje, quem deseja conhecer a realidade da época, a real situação desta região, o tratamento dado aos seringueiros e índios da beira do rio ou do “centro”, a encontrará nos relatórios e anotações de Doroti. A seguir, algumas situações registradas por ela.
“Em dezembro de 1975, o seringueiro Benedito Ribeiro, assíduo trabalhador, devedor de Cr$800,00 no barracão do Mosamar, foi despojado de rede, mosquiteiro e objetos caseiros porque não teve mais crédito com o gerente”.
“No Seringal Petrópolis trabalhavam 140 índios pela diária de 25,00 cruzeiros”.
“No Seringal do Coriolano vivem sete famílias. Recebem 20,00 cruzeiros de diária. Fazem troca de mercadoria no barracão. Pagam 1,00 cruzeiro pela carne de veado para os índios. Teoricamente pagam 10,00 cruzeiros por jaboti. O sal é do Coriolano, seringalista do qual dependem totalmente como escravos. Ali não chega marreteiro.”
Em Feijó “O prefeito de vez em quando vai fazer suas farras lá com os Katukinas levando bebida alcoólica. Por isto já estão eles mesmos agora com um botequim para servir o pessoal nas festas.”
Nas casas religiosas Doroti recebia abrigo junto com as empregadas ou as noviças, o que lhe deu oportunidade de sentir os problemas sociais existentes dentro dessas casas. E quantas “sementes do Verbo ocultas” não recolheu nas pequenas comunidades ribeirinhas e nestes restos dos povos indígenas? Das margens do Médio Rio Madeira, definiu em 1977 uma preocupação:
“A não existência de uma Igreja autóctone não está tanto na origem do missionário, mas o de este missionário não descobrir criticamente a história do povo indígena e do grupo envolvente ou do colonizador. A falência está na não encarnação, na não opção radical do missionário na causa indígena”.
O CIMI estava, então na mira dos militares, como comprova vasta documentação existente nos porões do Serviço Nacional de Inteligência. Ao chegar em Cruzeiro do Sul (Acre) para combinar com o bispo o levantamento da situação indígena na Prelazia, este, melhor entrosado com a ditadura do que com a Igreja, apresentou-a logo no quartel, ao invés de acompanhá-la na visita à Igreja, povo de Deus, ao longo dos rios e igarapés da prelazia.
Transformação de estruturas a partir da encarnação nas vítimas, era então a convicção de Doroti e dos integrantes de sua organização, a OPAN. E foi com esta vivência que participaram das Assembléias do CIMI, onde influíram decisivamente na formulação das “linhas de ação”: Garantia às terras indígenas, preservação de sua cultura, autodeterminação e em particular, uma atitude pessoal de amigos, companheiros e irmãos perseguidos, igualados e militantes em prol de sua causa.“Encarnação” em sua realidade até o ponto de “ser aceito como um deles”.
Nos barcos das prelazias navegou, ora com todo o apoio, ora forçada a se adaptar a uma pastoral alienante. Do seringal Canadá, Rio Envira (Acre) no dia 11 de setembro de 1976, escreveu:
“O regime é muito parecido com a Casa Grande e Senzala. Não há o castigo físico, mas muita submissão. O patrão é despótico e fala em altos brados que ‘este povo é preguiçoso, ignorante’. A religião pregada pelo padre é ainda mais despótica do que a autoridade do patrão. Confissões obrigatórias. Quando a gente fica por detrás dos bastidores observando, a gente vê que a confissão pode ser um terror.
A visita do padre em vez de ser a comunicação da graça (comunicação dialogo, amor), parece este injetar medo nas almas deste povo oprimido. Desse jeito ele nem pode se organizar em grupos, pois tudo o que surgir espontaneamente e não for de acordo com as regras de moral imposta pelo padre, será automaticamente violentada.
Às vezes me sinto fariseu, outras vezes Judas, outras Pedro negando, outras ainda e de modo muito doloroso o Pilatos, lavando as mãos ante a agressão aos humildes e inocentes cristãos.
Não sei se o que falo não vai criar confusão para o povo, mas procuro mostrar que Deus não é um patrão mau, mas um Deus de misericórdia. Procuro incentivar a fé para a esperança e a caridade.”
Fonte: Casa da Cultura do Urubuí
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