Por Pinheiro Salles*
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) acendeu uma luz no nebuloso horizonte das lutas pela memória e pela justiça em nosso País. Em seu balanço de atividades, um ano após a instalação em 16 de maio 2012, há algumas revelações que nos fazem acreditar na ruptura da conivência com os malefícios da ditadura militar (1964-1985). Além disso, a atual coordenadora Rosa Maria Cardoso não deixa dúvida: os resultados preliminares reforçam a convicção de que a revisão da Lei da Anistia (6.683/79) é essencial ao processo democrático.
Lembrando que os crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis, a advogada esclarece: “As autoanistias, dentro do direito internacional, não valem. Se estamos de acordo com isso, vamos ter, sim, que recomendar que estes casos sejam judicializados pelo direito interno”. E o ex-cordenador Paulo Sérgio Pinheiro enfatiza: “A minha posição é igual à da Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ela concluiu que as graves violações no Brasil devem ser punidas”. Então, não sendo um tribunal, a CNV deseja descortinar caminhos para o fim da impunidade que envergonha o Brasil diante dos demais países do mundo.
Sem demora, porém, o ministro da Defesa, Celso Amorim, informou que essa não é “a linha do governo”. Mantendo o posicionamento de todos os sucessores dos generais no poder, o porta-voz da presidenta Dilma (das Forças Armadas?) avisou: “O governo não estimulará nenhuma punição nem a revogação da Lei da Anistia”. Como se a subserviência aos tiranos já não estivesse suficientemente explicitada, o abalizado ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, veio a público para não permitir “especulações” quanto à posição do governo. Foi categórico: o STF já deu a “última palavra” sobre o assunto ao decidir que a anistia beneficiou também os agentes “acusados de torturar e matar” pessoas que combateram a ditadura, desafiando o terrorismo de Estado.
Se o Supremo Tribunal Federal confirmou a vontade dos militares, protegendo os verdugos que praticaram tortura, homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor, certamente não pode ter a palavra final, como se equivoca o ministro da Justiça. A propósito, deve-se verificar o entendimento da Associação dos Juízes pela Democracia, com sede na cidade de São Paulo: os crimes contra a humanidade não podem ser objeto de anistia ou autoanistia. Atesta que somente o Brasil, na América Latina, ainda não julgou os carrascos das ditaduras. E que o julgamento é fundamental para instituirmos o primado da dignidade da população em nosso País.
Portanto, que o povo se organize e se mobilize, construindo concretas formas de apoio à Comissão Nacional da Verdade, preparando o julgamento e punição dos torturadores que continuam vivos, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-Codi de São Paulo. Parafraseando a professora Suzi Weissman, do Departamento de Política de Saint Marys College, da Califórnia, quero, mesmo, que os julgamentos sejam efetivamente justos. Que ninguém conheça qualquer violência ou arbitrariedade, porque jamais, na história do Brasil, se poderá repetir o que foi colocado em prática ao longo dos 21 anos de regime autoritário.
Estou certo de que, como no Chile e Argentina, aqui nenhum torturador será submetido ao martírio dos aparelhos repressivos. Não haverá chutes, bofetadas, choques elétricos nos órgãos genitais, tendões dos braços cortados pelas cordas do pau-de-arara, costelas e dentes quebrados, crânios afundados, olhos furados, tímpanos rompidos, unhas arrancadas. Não se terá a cara mergulhada em balde de água, vômito, urina e fezes. Não existirão crianças afogadas em banheira, nem moças com os bicos dos seios extirpados. Assim, os/as brasileiros/as encontrarão motivo para se orgulhar das suas conquistas, confiando na plenitude da liberdade e da paz para as gerações futuras.
Sou um sobrevivente, anistiado político. Sustento a minha esperança de sempre, sem ódio ou mínimo sentimento de vingança. Aguardo o resultado da investigações da Comissão Nacional da Verdade e a revisão da Lei da Anistia para a necessária punição dos torturadores. Se isso não acontecer, que me prendam de novo, porque, já não prevendo outra oportunidade para esta punição, não aceitarei encerrar minha vida desfrutando de um benefício compartilhado com os energúmenos que aviltaram a nossa própria condição humana.
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* Pinheiro Salles preside a Comissão da Verdade e Justiça do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de Goiás.
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