Indígena mostra marcas de agressões que sofreu de policiais. Foto: Márcia Meneghini |
A imprensa de Manaus criou uma nova categoria de indígena: “supostos índios”. Na percepção muito particular de alguns colegas de profissão (não quero generalizar, embora a exceção seja a regra) que trabalharam na cobertura de uma ocupação de terra na estrada que liga Manaus ao município de Iranduba, os indígenas precisavam “provar” (seja lá de que forma) que eram “índios” para então serem reconhecidos como tal. Classificados como “supostos índios”, sua identidade étnica não era legítima, portanto, sua mobilização não era relevante.
Inconscientemente ou não, foi a forma que a imprensa encontrou para desqualificar uma mobilização de pessoas que brigavam pelo direito à terra. As abordagens tiraram daquelas famílias o direito de ascenderem à condição de sujeitos políticos de uma ação social.
A representação dos indígenas nas reportagens se tratou de um mera repetição do discurso oficial do Estado. Foi relatado apenas uma parte do que estava ocorrendo, numa deliberada decisão de reduzir os fatos.
Ninguém interrogou sobre o sentido e a origem daquela ação social. Ninguém quis resgatar as motivações que levaram as milhares de famílias indígenas e não-indígenas a ocuparem o terreno (que, segundo dados de pesquisas, são terras griladas; aliás, como a maior parte das áreas do nosso Estado). Não houve interesse para procurar as contradições do fato e assim formular novos questionamentos.
Por que ninguém quis saber no que havia por trás da estratégia policial de “vencer os invasores no cansaço”? Por que todos silenciaram diante da violência física e simbólica dos policiais contra os índios?
Ninguém quis saber também se aquele “desmatamento” e a degradação ambiental provocados pelos “invasores” (termo recorrente nas matérias) poderia ser de outra origem, outra causa e outra época.
Preguiça de apurar? Faltou um pouquinho de coragem para se desviar da vista dos policiais e dos caminhos óbvios e chegar até o outro lado do terreno? Desinformação para saber diferenciar as espécies de vegetação (mata primária, mata secundária, capoeira)? Pressão para fechar a matéria e ouvir apenas o órgão ambiental? Tudo isso junto?
Pesquisadores visitaram a área
Na véspera da retirada das famílias “invasores” os pesquisadores Glademir Sales dos Santos e Márcia Meneghini estiveram no terreno ocupado. Fizeram o que qualquer jornalista e/pesquisador devem fazer: ver e ouvir os personagens envolvidos numa ação social.
Glademir e Márcia integram o grupo Nova Cartografia Social da Amazônia, vinculado à Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e à Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que atua em várias linhas de pesquisa. Uma delas tem como foco os indígenas que vivem em Manaus. Nenhum jornalista procurou o grupo de pesquisa para auxiliá-los na sua apuração e, desta forma, mostrá-los um lado sobre o qual ninguém dava importância.
Márcia Meneghini (que é jornalista formada e tem mestrado em Antropologia) apurou alguns informações que não vimos em nenhum portal de notícia, jornal impresso e muito menos em televisão e rádio.
Após cortar caminho pelo mato e fugir dos olhares dos policiais que vigiavam o terreno, ela conseguiu chegar nos indígenas e falar com as principais lideranças. Durante as conversas, junto com Glademir Sales dos Santos, Márcia ouviu relatos de violência e agressão de policiais contra os indígenas. Um resumo sobre as idas a campo durante a ocupação pode ser lida no site do Nova Cartografia Social da Amazônia.
Para atiçar ainda mais a fogueira, uma abordagem que tomou conta das coberturas dos jornais foi o “desmatamento” provocado pelos “invasores”. O órgão ambiental surgiu na imprensa preocupado com os impactos.
Mas leia o que Sabá Kokama, uma das lideranças indígenas ouvidas falou a Márcia, ao se defender das acusações: “Quando chegamos era capoeira. Ali quem tirou foi o próprio governo para botar terra para ali [obra da Ponte Rio Negro]. Quem tirou as madeiras daqui não foram os índios, não. Foram as olarias e os empresários. Vocês já viram índio com caçamba aqui dentro?”.
Mais informações seu trabalho de campo pode ser lido no site Taquiprati, do professor José Ribamar Bessa, que também dá uma aula de antropologia e história, além de uma crítica à imprensa local. Sem falar na qualidade do texto.
Uma sugestão: seria interessante questionar os órgãos ambientais, tão preocupados com a degradação, sobre os licenciamentos ambientais que libera para empreendimentos de grande porte de impactos muito mais danosos. Alguns destes empreendimentos, aliás, com consequências drásticas, levando à retirada forçada dos moradores de muitas comunidades tradicionais. Estas retiradas são as principais causas de conflitos fundiários posteriores.
Etnografia
Faltou sensibilidade sociológica e antropológica para a imprensa? Talvez, mas um jornalista não precisa necessariamente fazer cursos dessas áreas citadas para desenvolver o óbvio: ouvir, sem pressa, quem também está sendo atacado.
E ali naquela situação, não era o agente público o atacado, mas as famílias que ocupavam o terreno. E ouvir, de preferência, longe da vigilância dos agentes oficiais (polícia, servidores, funcionários públicos, espiões do Estado, etc).
Tentar fazer uma etnografia daquela ocupação que, na minha avaliação, deve ter sido a maior de Manaus (aqui me refiro à região metropolitana) envolvendo grupos indígenas não é algo de outro mundo. Para isso, basta uma percepção social e uma boa dose de curiosidade.
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