A experiência dos Estados Unidos mostra que a privatização da água foi um fracasso.
Enquanto prossegue em Bali, na Indonésia, a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), ativistas pedem que os ministros deixem claro que os recursos hídricos não podem ser tratados como insumos industriais. Os críticos das privatizações e da “financeirização” dos recursos naturais ressaltam o crescente interesse dos investidores multinacionais em comercializar os recursos hídricos comuns. Esta mudança pode ter efeitos particularmente danosos nas comunidades pobres e marginalizadas.
Embora em 2010 o direito universal à água (e ao saneamento) tenha sido consagrado em pactos internacionais, os acordos de comércio ainda não assumiram isso, o vazio que se torna cada vez mais perigoso, segundo especialistas.
“A financeirização e a privatização da água já é em grande parte um objetivo de longo prazo de importantes investidores e empresas multinacionais”, disse à IPS William Waren, analista em políticas comerciais do escritório norte-americano da organização Amigos da Terra. “Estas entidades apostam na comercialização e distribuição da água de um modo muito parecido ao do petróleo. Eles sabem que o aquecimento global tornará cada vez mais escassos os recursos hídricos, por isso querem se apoderar deles vendê-los ao preço que desejarem”, acrescentou.
Waren citou a Suez Environment, gigante francês da água, e T Boone Pichens, o magnata norte-americano do petróleo que passou para o setor das energias alternativas. Mas, além de onde se situem estes investidores, seu objetivo é transnacional.
Coincidindo com a conferência da OMC, iniciada terça-feira e que termina hoje, a Amigos da Terra Internacional apresentou uma série de estudos sobre as experiências de uma dezena de países na financiarização de recursos hídricos. O informe diz que uma confluência de instituições financeiras e corporações internacionais estão “pavimentando o caminho” para este processo. Esses grupos recebem apoio-chave dos acordos comerciais internacionais, tanto pelas imprecisões dos existentes quanto por estratégias explícitas em outros em negociação, encabeçados particularmente pelos Estados Unidos.
Trata-se de “forças motrizes da desregulamentação e liberalização qu,e abriram os setores da água e do saneamento ao lucro corporativo, e que são componentes básicos da arquitetura da impunidade que o protege”, cada vez menos transparentes e menos democráticas, de associações transoceânicas lideradas por Washington e a agenda da OMS sobre serviços ambientais”, acrescenta a Amigos da Terra.
Neste debate é chave o pacto firmado há mais de meio século, predecessor da atual OMC criada em 1995, conhecido como Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT). Suas disposições continuam regendo as políticas de comércio de bens materiais, embora nem este nem a OMC definam claramente o que é um “bem” e nem se a água é um deles.
“O ponto de vista tradicional no direito internacional é que a água é um bem público, assim já em 1948 não havia nenhuma consideração sobre o que as grandes corporações contemplam hoje: o controle completo do sistema, desde o poço até a torneira”, afirma a Amigos da Terra. “Por isso necessitamos assegurar que os novos acordos comerciais ofereçam garantias específicas de que a água é parte dos bens públicos, que não é uma mercadoria nem um produto”, acrescentou.
O debate da OMC sobre o comércio de serviços prossegue, enquanto os países oferecem seus próprios compromissos. Até agora nenhum país assumiu compromissos substanciais em relação ao abastecimento doméstico de água. Os debates desta semana em Bali aparecem como a última possibilidade de a OMC chegar a um acordo multilateral, pois a atual Rodada de Doha, iniciada na capital do Catar em 2011, acumula mais de uma década de frustrações.
Enquanto isso, energias liberalizantes se transformaram em negociações multilaterais e bilaterais e em acordos de investimento. Dois dos maiores estão atualmente em negociação, ambos liderados por Washington: o Acordo de Associação Transpacífico, de 12 países, e uma área de livre comércio entre Estados Unidos e União Europeia. Caso se concretizem, incluirão a maior parte da economia mundial.
Mas estes pactos comerciais também apresentam rígidos requisitos que favorecem as empresas, e mecanismos quase judiciais de implantação que colocam os investidores no mesmo nível que os Estados soberanos. Apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter estabelecido em 2010 o direito universal à água, os tribunais que atuam em disputas no contexto de acordos de investimentos não costumam reconhecer o direito humanitário internacional. Por isso é importante a OMC se pronunciar claramente no debate sobre a água como mercadoria comerciável.
É paradoxal que a luta para maior financiarização da água seja liderada pelos Estados Unidos, cuja experiência na privatização das empresas públicas de água é notoriamente negativa. A maior empresa privada de água desse país, American Water, foi antes propriedade de uma firma alemã que se retirou, em grande parte, pela resistência social a que capitais privados e estrangeiros fossem donos dos recursos hídricos.
“Claramente houve resistência à propriedade privada”, disse à IPS a pesquisadora Mary Grant, da Food & Water Watch (FWW). “As comunidades deixaram explícito que querem propriedade local, para controlar a qualidade do serviço e as tarifas”, acrescentou.
Estudos da FWW concluíram que companhias de serviços públicos propriedade de investidores em dezenas de Estados norte-americanos cobram um terço a mais do que as estatais. Os sistemas com fins lucrativos também apresentam problemas quando é preciso estender o serviço, pois as empresas são reticentes em ampliar a cobertura para áreas pobres ou comunidades muito pequenas.
“A experiência dos Estados Unidos mostra que a privatização da água foi um fracasso. Não gerou serviços melhores, apesar da alta nos preços, e frequentemente foram piores. A provisão local e pública é a maneira mais responsável de garantir que todos tenham acesso a água limpa e barata”, afirmou Grant. Envolverde/IPS
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