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domingo, 16 de março de 2014

20 anos que arruinaram o Brasil - Angelina Anjos*

A verdade dói, mas precisa ser dita, reza o provérbio popular. Os generais dizem que houve uma guerra e que tinham, portanto, o direito de fazer com os adversários o que bem entendessem. Uma guerra sem declaração, de uma minoria fardada e armada até os dentes contra o povo indefeso, que se algum crime cometeu foi o de ter protestado e lutado contra uma ditadura infame.

Após 50 anos do golpe militar que agiu indiscriminadamente contra operários, estudantes, camponeses, jornalistas, artistas, intelectuais, deputados, padres e freiras, ainda é importante que o povo brasileiro seja lembrado, precisa conhecer tudo o que ocorreu no submundo da repressão nos negros anos de ditadura fascista. Não por revanchismo, propriamente dito. Para educar e prevenir o futuro.

A ditadura brasileira travou uma guerra suja contra o povo. Seus crimes, hoje ainda impunes, foram desde assassinatos a sangue-frio na tortura até a remontagem de todo o aparelho de Estado, exacerbando seu caráter opressor.

Cerca de meio milhão de homens, mulheres e crianças passaram pelas prisões. Houve 4877 cidadãos com direitos políticos cassados, 128 banidos, perto de 10 mil exilados e muitos milhares de torturados nas masmorras da ditadura. 

A máquina de espionagem, tortura e morte começou a ser montada logo após o golpe, com base nos quadros e na estrutura das Forças Armadas e dos órgãos policiais existentes. 

Alimentavam-se com fartas verbas oficiais, doações de capitalistas e o produto de saques. A estrutura policial-militar anterior a 1964 (já opressiva e antipopular) foi toda posta sob o comando do Conselho de Segurança Nacional. Para espionar a nação os golpistas implantaram o SNI que operava como governo paralelo e “observava” a nação inteira – controlava as fichas de 10 milhões de brasileiros, escutava conversas telefônicas até do Presidente da República. 

Em cada um das três Armas foram criados serviços secretos: o CIE no Exército; o CENIMAR da Marinha (famoso pela tortura científica que praticava na ilha das flores); o CISA da Aeronáutica.

Para o cotidiano do trabalho mais sujo criaram os CODI-DOIs. As Polícias Militares passaram à tutela do Exército e especializaram-se na repressão à greves e movimentos de massas. O Ministério da Justiça antes um órgão eminentemente político, transformou-se em instituição policial responsável pela censura à imprensa e as artes e pela Polícia Federal que realizava os inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional.

O Poder Executivo militarizou-se. A Presidência da República passou a ser posto privativo dos generais de quatro estrelas. E a alta oficialidade espalhou-se pelos órgãos administrativos, chefia das autarquias e empresas estatais, ramificando-se também pelas diretorias das multinacionais que aqui se instalaram.

Em 1963, a população brasileira era de 76 milhões de pessoas. Naquele ano 25,3 milhões de brasileiros compunham a população economicamente ativa. A classe operária era formada por 3,6 milhões de trabalhadores; 40% dos brasileiros eram analfabetos e havia um déficit habitacional de 8 milhões de residências.

O trabalho desses 25 milhões de brasileiros foi o fermento que fez crescer o bolo que o ministro Delfim Netto dizia que primeiro devia crescer, para depois ser repartido. 

Os trabalhadores nunca engoliram a história do bolo do ministro Delfim Netto. E tinham razão: afinal, revelou-se como uma das maiores mentiras que já tiveram que enfrentar. Entre 1963 e 1983, a fatia dos ricos cresceu, e a dos pobres encolheu. No campo, os latifúndios ficaram ainda maiores e aumentou o número de camponeses sem terra.

O modelo econômico implantado pelos militares e pelos tecnocratas teve efeito semelhante no campo e na cidade: concentra riqueza e meios de produção num polo, nas mãos de uma minoria. O outro polo é o da miséria crescente dos trabalhadores que produzem a riqueza.

O empobrecimento do povo brasileiro foi inegável, manifestava-se principalmente na fome, patologia nacional mais difundida. O verdadeiro milagre brasileiro foi realizado pelo próprio povo por ter conseguido sobreviver em condições tão adversas. 

Vinte anos de ditadura no Brasil foi suficiente para deixar um povo doente, subnutrido, pobre, no qual os portadores de necessidades especiais eram considerados um peso enorme a ponto de comprometer sua capacidade de aprender e trabalhar. 

Uma das memórias mais repugnantes do regime foi como os generais venderam a soberania nacional aos banqueiros e entregaram a gestão da nossa economia às mãos do Fundo Monetário Internacional. O crime da ditadura não foi o de criar a dívida. Foi de reduzir o país a escravo dela, a mando dos banqueiros internacionais, principalmente americanos.

Em que pese longa permanência no poder, nunca o regime militar conquistou o apoio do povo brasileiro. Pelo contrário, os sucessivos generais no poder buscaram de diferentes formas a simpatia da população, mas sua verdadeira face de inimigos da liberdade e do progresso social só lhes granjeou o repúdio dos brasileiros.

Desde os primeiros momentos, a resistência dos trabalhadores e democratas aos generais golpistas se fez presente. No próprio dia 1º de abril, os trens da Leopoldina e Central do Brasil, no Rio de Janeiro, não funcionaram devido à greve dos ferroviários. Estudantes ocuparam a Faculdade de Filosofia do Rio, o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito e o prédio da UNE – de onde foram desalojados à força pelos fascistas, que incendiaram a sede da entidade. Manifestações se realizaram em frente ao Clube Militar e Ministério da Guerra. Tiros foram disparados contra a multidão. Mas a direção reformista do movimento popular à época e a confiança num anunciado “dispositivo militar” do presidente João Goulart deixaram, no fundamental, as massas desarmadas para enfrentar o golpe.

Desde então, a luta democrática assumiu diferentes formas. Greves com ocupação de fábricas (Osasco e Contagem – 1968), passeatas e manifestações estudantis (passeata dos 100 mil – 1968), enfrentamentos de rua contra os gendarmes do regime, resistência cultural, grupos de guerrilha urbana e a luta guerrilheira do Araguaia – ponto alto da resistência antifascista, que durou três anos. 

Os trabalhadores desenvolveram dentro dos sindicatos a luta contra os interventores ministeriais e os pelegos. No campo, mais de mil entidades sindicais foram criadas por assalariados e pequenos proprietários rurais, não obstante os inúmeros assassinatos de líderes camponeses perpetrados pelos latifundiários e pelos agentes do governo.

Campanhas como a da Anistia, que chegou a realizar manifestações com 20 mil pessoas no Rio de janeiro, e pelas eleições diretas empolgaram a população, que realizou abaixo-assinados e manifestações exigindo o fim do arbítrio. 

Os generais achavam que poderiam indefinidamente fazer o que bem quisessem, não contavam com a força da luta travada pelo povo em condições tão desfavoráveis. O povo não se deixou intimidar pelas ameaças, pelo barbarismo imposto, realizou contra o regime um combate sem trégua. As grandes massas adquiriram a compreensão profunda que sua tarefa essencial era a conquista da liberdade política, a mais ampla possível, com a derrocada do sistema arbitrário. 

Às vésperas do 50º aniversário do golpe militar, a situação econômica, social, política do Brasil é pujante, o país possui a Comissão Nacional da Verdade e muitos Estados reverberam instalando as suas. Apurar todo o arbítrio da época é uma tarefa primordial pela memória e verdade histórica. O esforço é para vacinar a consciência nacional, no sentido, que episódios como os de abril de 1964, ninguém esqueça e para que nunca mais aconteça. 

O abril de 2014 será comemorado nas ruas, nas praças, dentro das Assembleias Legislativas de Norte a Sul do país, o povo não tem porque ficar em casa. Cada operário, cada estudante, cada trabalhador patriota e democrata tem a responsabilidade de comemorar a resistência dos brasileiros que deram suas vidas por um Brasil onde todos pudessem ter as liberdades como o maior trunfo de um futuro engravidado de generosidade e liberdade política. Viva a luta do povo brasileiro!

*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil no Pará.

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