Primeira mulher a ocupar o cargo, recebeu Marie Claire no Palácio da Alvorada para uma entrevista em que admitiu ter cometido erros políticos, inclusive na falta de medidas feministas. Falou também sobre suas maiores dores pessoais: a morte do pai, a tortura, o câncer. Disse que tem dificuldade de chorar em momentos extremos e quer deixar, como contribuição para a história, a força da resistência feminina.
O Brasil será um país diferente no fim deste mês, depois que o Senado decidir se Dilma Rousseff deve, ou não, deixar definitivamente a Presidência da República.
Marie Claire foi a primeira revista feminina a falar com a primeira presidente mulher do Brasil. O ano era 2009 e Dilma, então ministra da Casa Civil do governo Lula, despontava como a provável sucessora do presidente da República. Sua candidatura não tinha sido anunciada e, naquela conversa, ela se apresentou como uma defensora da legalização do aborto, dizia que sentia culpa de sair para trabalhar e deixar a filha, Paula, em casa quando a menina era pequena e se enchia de orgulho ao detalhar sua atuação contra a ditadura militar. Sete anos, dois mandatos presidenciais e um processo de impeachment depois, Marie Claire voltou a falar com a presidente (afastada) da República.
Dilma recebeu nossa equipe no fim do mês de junho, no Palácio da Alvorada. Na garagem, duas bicicletas remetiam à moradora. Ao entrar em uma ampla sala de conferências onde a aguardávamos, a mineira de 68 anos vestia preto, meias finas, sapato de salto baixo, trazia um olho grego no pulso esquerdo, bijuterias douradas, e agiu como de hábito.
Foi dura com um funcionário que interrompeu a entrevista. “Presidenta, ganhamos em Porto Alegre”, disse ele na porta da sala, com relação à medida que devolvia a Dilma o direito de usar, ainda que com restrições, um avião das Forças Armadas do Brasil para se locomover pelo país. “E o que é que você quer que eu faça com essa informação?”, respondeu. “É que é uma boa notícia, presidenta”, justificou-se o assessor. “Ocê sabe que eu não ligo muito para essa coisa”, rebateu ela.
Durante a conversa, Dilma estava relaxada e bem-humorada. Falou sobre política mas esquivou-se de responder às dúvidas que rondam sua campanha na operação Lava Jato. Admitiu que cometeu erros políticos – da aliança com Michel Temer à demora em agir diante da resistência de parlamentares, então aliados, no Congresso. Indagada sobre aborto e equiparação salarial entre gêneros, fez um mea-culpa.
Da vida pessoal, lembrou a morte do pai (o advogado búlgaro Pedro Rousseff, falecido em 1962), a maior dor de sua vida. Riu das puladas de cerca do ex-marido, Carlos Araujo, seu amigo até hoje e com quem foi casada por 30 anos, e disse que, afastada do governo, pôde ficar mais perto da filha, Paula, 37 anos, e dos netos, Gabriel, 5 anos, e Guilherme, 6 meses, que vivem em Porto Alegre. A seguir, os melhores trechos da conversa.
Marie Claire - A senhora foi a primeira presidente mulher do país e ficou no poder cinco anos e meio. Por que não trouxe para o debate a questão da equiparação salarial e do aborto?
Dilma Rousseff - Cumprimos a legislação e levamos o SUS a fazer o aborto previsto em lei: quando a gravidez coloca em risco a vida da mãe, em caso de estupro e por anencefalia, o que já é dificílimo no Brasil. Não é papel do Estado brasileiro discutir a lei. Quem tem que colocar essa matéria em discussão é o movimento feminino. A grande questão nesse período foi a violência contra mulher, de estupro a assassinato. Ganhamos a Lei Maria da Penha novamente, que havíamos perdido, fizemos a Lei do Feminicídio – que tornou crime hediondo e inafiançável o assassinato da mulher pelo fato de ser mulher – e as Casas da Mulher Brasileira, que são centros de assistência e acolhimento a vítimas de violência. Além disso, quem recebe o Bolsa Família é a mulher, quem é dono do imóvel no Minha Casa Minha Vida, prioritariamente, é a mulher. É uma segurança e uma riqueza. Agora, vocês têm razão, a discussão do trabalho igual para salário igual cabe sim. É algo que tem que ser feito. Nesse sentido, atuamos na PEC das Domésticas. Nós regulamentamos a maior profissão feminina que existe hoje no Brasil e demos a ela o direito de receber contribuição.
MC - A presidente do Chile, Michele Bachelet, em seu primeiro mandato (2006-2010), criou uma lei que dava estímulo fiscal para empresas que pagavam salários iguais para homens e mulheres. Isso poderia ser feito no Brasil?
DR - Acho que sim. Essa hipótese é muito interessante. Tem de ver qual é o custo dela. A questão feminina e da diversidade já é e será uma das que vão mobilizar as pessoas para uma atuação pública. Não é trivial, é tão importante quanto o clima.
MC - Em entrevista à Marie Claire em 2009, a senhora disse que o aborto deveria ser legalizado por ser uma questão de saúde pública. No ano seguinte, em campanha contra o então candidato José Serra, mudou o discurso. Afinal, o que pensa?
DR - Como presidente não posso falar sobre isso. O dia em que sair, dou minha opinião pessoal. Agora, nessa questão, nas condições do Brasil hoje, não cabe ao Estado interferir na lei.
MC - Mas o Estado interfere na medida em que proíbe a mulher de arbitrar sobre o próprio corpo.
DR - O espaço de debate é o Parlamento ou o Judiciário. No Brasil, há uma visão do Estado de que é algo que você acorda de manhã e fala: vou mudar isso. Na democracia não é assim.
MC - A sua chegada à Presidência e o fato de ter nomeado nove ministras foram considerados avanços para o movimento feminista. A sua saída representa um retrocesso?
DR - Não. Tenho tido o cuidado de mostrar que, mesmo quando nos atacam, temos coragem para resistir. O que vivi foi reflexo de uma grande misoginia. Ou eu era muito dura e por isso não me abatia, ou vivia no mundo da lua. A mulher é sempre histérica ou descontrolada. Se você não é nenhuma dessas coisas, é um trator, não uma mulher. Isso é machismo. A mensagem por trás disso tudo é a de que a mulher é frágil. Se fosse um homem, diriam: “Ele é firme”. Tenho de mostrar que coragem não nos falta. Acho que minha missão [de vida], além de lutar pela democracia, é deixar claro que a mulher, nas piores condições, não se curva nem se entrega. Não tenho dúvidas de que queria deixar um legado mais positivo. Mas deixo o legado da resistência feminina. Vou resistir até o último momento. Não pensem que me atemorizam. Não estou embaixo da cama nem morrendo de tristeza, como gostariam. Morro é de injustiça.
MC - Como esse “morrer de injustiça” se manifesta em sua vida?
DR - Ao contrário do que possa parecer, isso me dá mais ânimo. Até por velhice [risos], estou com 68 anos. Não acredito que a vida, na real, seja um lago tranquilo. Enfrentei dois golpes no Brasil e em ambos tive uma participação efetiva. No primeiro, lutei e fui presa por três anos. Agora, estou resistindo. Também tive um câncer [linfático]. Sempre achei que a boa vida é feita de lutas que valem a pena. Claro que todo mundo fantasia: vai chegar uma hora que vai ser mais fácil, mas não é.
MC - Dá para dizer que algumas dessas situações que a senhora enumerou são piores que outras?
DR - [Faz uma pausa e pensa]. A ditadura. A tortura e a prisão daquela forma tiram a dignidade. [Os torturadores] te impõem dor para arrebentar sua dignidade. A doença, de certa forma, também faz isso, mas dentro da sua humanidade, não tentando te tirar a dignidade.
MC - Quando foi que a senhora percebeu que o presidente interino, Michel Temer, deixou de ser seu aliado?
DR - Quando ele começou a se manifestar, a fazer suas cartas e declarações. Era tudo muito óbvio. Lamento muito que ele tenha usado a estrutura da vice-presidência para percorrer o Brasil inteiro articulando uma conspiração. Fazendo um paralelo com a situação atual: sou presidente eleita, tenho todo o direito de usar o avião [das Forças Armadas do Brasil]. Quem não tinha o direito de usar o avião para ir a todos os estados conspirando contra mim era ele.
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