Diz o provérbio que o uso do cachimbo deixa a boca torta. Durante a Ditadura Militar, os generais habituaram-se a dar ordens aos civis. Oficialmente encerrado o regime militar, porém mantidas no conforto da impunidade todas as patentes envolvidas com os crimes cometidos, do pé ao topo da hierarquia (de cabo a general de Exército, de taifeiro a tenente-brigadeiro, de marujo a almirante-de-esquadra), eles mantiveram o hábito de mandar e desmandar nos paisanos, de situarem-se acima da sociedade, de ignorarem acintosamente os direitos e normas constitucionais.
Trinta anos depois, tudo como dantes no quartel de Abrantes.
O general Enzo Peri, comandante do Exército, acaba de afrontar os poderes civis da República, aos quais deve obediência (só que não). O general encaminhou a todas as unidades do Exército uma ordem ilegal, segundo a qual nenhuma delas deve fornecer informações requisitadas por órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) ou outros interessados, cabendo exclusivamente ao gabinete do comandante decidir sobre as respostas.
Portanto, o general Enzo está zombando do ordenamento jurídico, que dá ao MPF a prerrogativa de investigar, e está zombando dos brasileiros, incluída a comandante em chefe das Forças Armadas, a presidenta da República, que sancionou a lei que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Mas há um agravante nessa história. É que Enzo é reincidente. Ele seguiu na trilha aberta por seu antecessor, o general Francisco Albuquerque, de quem falaremos adiante.
Por que digo que Enzo é reincidente? Porque, ainda no governo Lula, ele foi um dos pivôs de uma grave crise política, em 2009, ao acompanhar o tresloucado ministro Nelson Jobim, da Defesa, num verdadeiro motim contra o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Jobim e os comandantes militares ameaçaram demitir-se caso o presidente não alterasse o PNDH-3, retirando dele modestos avanços democráticos ali contidos, relacionados à revogação da Lei da Anistia e investigação dos crimes da Ditadura Militar. Em vez de demitir imediatamente os amotinados, Lula cedeu à chantagem e preferiu mutilar o PNDH-3.
Já no governo Dilma, mantido no cargo apesar da rebelião antidemocrática que encabeçou, Enzo manteve-se na linha da resistência ativa à CNV e às políticas de direitos humanos da Presidência. Deu suporte às seguidas negativas e embaraços criados aos pedidos de documentos feitos pela CNV às Forças Armadas. Mais recentemente, passou da resistência dissimulada ao escárnio, ao endossar, como comandante do Exército, os debochados resultados da “sindicância” realizada a pedido da CNV a respeito das instalações militares que sabidamente abrigaram aparatos de tortura e execução de presos políticos durante a Ditadura Militar.
Portanto, Enzo reincidiu diversas vezes. Devemos nos perguntar: como é possível tal atrevimento? Por onde anda o ministro da Defesa, Celso Amorim? Tornou-se um fantoche nas mãos dos comandantes militares?
Uma explicação possível para esse estado de coisas é que, por ocuparem seus cargos desde 2007 (portanto, há quase dois mandatos presidenciais, como bem observou o jornalista Luiz Cláudio Cunha), e tendo sido recompensados por seu motim antiPNDH-3, Enzo e seus colegas passaram a julgar-se intocáveis. Inspiram-se, igualmente, em outro exemplo profundamente negativo para a democracia brasileira, a seguir relatado.
O general Albuquerque, já citado, é aquele que, dando ordens de prisão a funcionários do aeroporto de Viracopos, mandou parar um jato da TAM lotado em plena pista de decolagem, em março de 2006, para que ele próprio e sua esposa, atrasados, pudessem embarcar, depois que dois passageiros foram convencidos a ceder seus assentos ao casal.
Pior ainda: é aquele que autorizou o Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex) a emitir uma nota ultrajante a propósito da memória de Vladimir Herzog, quando da descoberta, em 2004, de uma fotografia que se pensava ser do jornalista assassinado no II Exército em 1975. O então ministro da Defesa, José Viegas, um diplomata dotado de tutano, sugeriu a Lula a demissão de Albuquerque. Lula preferiu demitir Viegas. Os generais exultaram. Foi essa a escola que produziu os Enzos.
Tem toda razão Luiz Cláudio Cunha, com a autoridade de quem revelou a presença da abjeta Operação Condor no Brasil e continua produzindo indispensáveis reportagens contra as atrocidades do regime militar, quando exorta a presidenta Dilma Rousseff a demitir o general Enzo Peri.
Não é possível que em pleno século 21 a Ditadura Militar prossiga tutelando a sociedade brasileira. Não é admissível que generais continuem asfixiando a democracia brasileira. Não é razoável que chefes militares continuem zombando da luta por memória, verdade e justiça sem que sejam punidos. O que está em jogo é a democracia e o futuro do Brasil, simples assim. Os militares só entendem a linguagem da hierarquia. Dilma, reafirme a soberania popular: demita Enzo.
*O autor é jornalista, pesquisador acadêmico e membro do Comitê Paulista por Memória, Verdade e Justiça (CPMVJ)
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