Joaquim Barbosa deixa a cena política como um farrapo do personagem desfrutável que se ofereceu um dia ao conservadorismo brasileiro. Na verdade, não era mais funcional ter a legenda política associada a ele.
Sua permanência à frente do STF tornara-se insustentável. Vinte e quatro horas antes de comunicar a aposentadoria, já era identificado pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, como um fator de insegurança jurídica para o país.
A OAB o rechaçava.
O mundo jurídico manifestava constrangimento diante da incontinência autoritária. A colérica desenvoltura com que transgredia a fronteira que separa o sentimento de vingança e ódio da ideia de justiça, inquietava os grandes nomes do Direito.
Havia um déspota sob a toga que presidia a Suprema Corte do país. E ele não hesitava em implodir o alicerce da equidistância republicana que confere à Justiça o consentimento legal, a distingui-la dos linchamentos falangistas.
O obscurantismo vira ali, originalmente, o cavalo receptivo a um enxerto capaz de atalhar o acesso a um poder que sistematicamente lhe fora negado pelas urnas.
Barbosa retribuía a ração de holofotes e bajulações mercadejando ações cuidadosamente dirigidas ao desfrute da propaganda conservadora.
Na indisfarçada perseguição a José Dirceu, atropelou decisão de seus pares pondo em risco um sistema prisional em que 77 mil sentenciados desfrutam o mesmo semiaberto subtraído ao ex-ministro.
Desde o início do julgamento da AP 470 deixaria nítido o propósito de atropelar o rito, as provas e os autos, em sintonia escabrosa com a sofreguidão midiática.
Seu desabusado comportamento exalava o enfado de quem já havia sentenciado os réus à revelia dos autos, como se viu depois, sendo-lhe maçante e ostensivamente desagradável submeter-se aos procedimentos do Estado de Direito.
O artificioso recurso do domínio do fato, evocado como uma autorização para condenar sem provas, sintetizou a marca nodosa de sua relatoria.
A expedição de mandados de prisão no dia da República, e no afogadilho de servir à grade da TV Globo, atestaria a natureza viciosa de todo o enredo.
A exceção inscrita no julgamento reafirmava-se na execução despótica de sentenças sob o comando atrabiliário de quem não hesitaria em colocar vidas em risco.
O que contava era servir-se da lei. E não servir à lei. A mídia isenta esponjava-se entre o incentivo e a cumplicidade.
Em nome de um igualitarismo descendente que, finalmente, nivelaria pobres e ricos no sistema prisional, inoculava na opinião pública o vírus da renúncia à civilização em nome da convergência pela barbárie.
A aposentadoria de Barbosa não apaga essa nódoa.
Ela continuará a manchar o Estado de Direito enquanto não for reparado o arbítrio a que tem sido submetidas lideranças da esquerda brasileira, punidas não pelo endosso, admitido, e reprovável, à prática do caixa 2 eleitoral.
Igual e precedente infração cometida pelo PSDB, e relegada pela toga biliosa, escancara o prioritário sentido da AP 470: gerar troféus de caça a serem execrados em trunfo no palanque conservador.
A liquefação jurídica e moral de Joaquim Barbosa nos últimos meses tornou essa estratégia anacrônica e perigosa.
A toga biliosa assumiu, crescentemente, contornos de um coronel Kurtz, o personagem de Marlon Brando, em Apocalypse Now, que se desgarrou do exército americano no Vietnã para criar a sua própria guerra dentro da guerra.
Na guerra pelo poder, Barbosa lutava a batalha do dia anterior.
Cada vez mais, a disputa eleitoral em curso no país é ditada pelas escolhas que a transição do desenvolvimento impõe à economia, à sociedade e à democracia.
A luta se dá em campo aberto. Arrocho ou democracia social desenham uma encruzilhada de nitidez crescente aos olhos da população.
A demonização do ‘petismo’ não é mais suficiente para sustentar os interesses conservadores na travessia de ciclo que se anuncia.
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