A lei de execução penal é de 1984. A ditadura agonizava e o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, empenhou-se, com sucesso, na elaboração de uma legislação moderna e humanizada em face de um caótico e desumano sistema penitenciário nacional. Logo no artigo 3º., essa lei assegura “ao condenado e ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Está claro, em face dessa norma recepcionada pela nossa Constituição de 88, não se poder manter em regime fechado o condenado a regime menos rigoroso, como, por exemplo, o semi-aberto e o aberto. No particular, é remansosa a jurisprudência dos tribunais brasileiros de servir o remédio heroico do habeas-corpus liberatório para por fim a esse tipo de abuso de poder e ilegalidade.
Na semana que passou, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou, em processo da sua competência originária e apelidado de ‘mensalão’, uma questão nova e concluiu ser possível a execução parcial de condenação defintiva, caso, por exemplo, de José Dirceu e com relação ao crime de corrupção ativa. Prevaleceu o entendimento de ser possível a execução parcial das penas, vale dizer, o fatiamento do julgado, num neologismo processual penal: transitou em julgado, “tollitur quaestio”. A questão está encerrada, ainda que condenações, por outros crimes, estejam pendentes.
Mais ainda, decidiu-se, na referida sessão plenária, não ser possível a execução provisória de acórdão condentório sem trânsito em julgado e pendente de embargos infringentes. Mesmo os seis embargantes que não obtiveram quatro votos absolutórios, condição de admissibilidade desse recurso previsto no Regimento Interno do STF, não poderiam ter processo de execução provisória aberta. E mesmo que não conhecidos esses seis infringentes, por decisão monocrática do relator Joaquim Barbosa, não caberia execução dada a possibilidade de interposição de agravo regimental ao Plenário.
Com efeito, na execução parcial aberta, o juiz da execução, ministro Barbosa, estava balizado pela última decisão da Corte. Apesar disso, condenados a regime semi-aberto, como José Dirceu, por exemplo, foram, no último 15 de novembro colocados, ilegal e abusivamente, em regime fechado. E se percebeu que, na pressa e atropelando-se a lei de execução que confere a “proteção contra qualquer forma de sensasionalismo” (art.41,VIII), o ministro Barbosa, além de omitir o regime prisional na guia de recolhimento para a execução, não se informou sobre a existência de vagas em regime semi-aberto. Deve-se lembrar, pois também remansosa a jurisprudência, que a inexistência de vagas no regime semi-aberto implica na provisória concessão de regime aberto, na modalidade de prisão albergue. No caso de inexistência de casa de albergado, outorga-se, sempre provisoriamente, a prisão albergue domiciliar.
Como se percebe, além das flagrantes ilegalidades e abusos de poder, o ministro Barbosa não domina a lei de execução penal e nem as interpretações dadas pela doutrina e jurisprudência. Em face disso, deveria ter sido mais cauteloso e ter evitado os constrangimentos suportados por condenados que se entregaram e, por evidente, não precisavam ter viajado algemados. Fora isso, e como a pena, por princípio constitucional, tem como finalidade ética a emenda do condenado, mantê-los próximos à família e nas suas cidades, conforme concluem os tratadistas, ajuda na chamada ressocialização. A nossa penitenciarista maior, Armida Bergamini Miotto, no seu Curso de Direito Penitenciário, anota que a família, que deverá estar próxima, dará a atenção e o apoio necessário, apesar da reprovação à conduta dada como criminosa.
Para completar esse quadro, um dos condenados a regime fechado, Henrique Pizzolato, fugiu para a Itália e, portador de cidadanias brasileira e italiana, acredita estar blindado. Diante da fuga, a interina procuradora geral da república acredita em soluções mágicas. Ela sustenta ser caso de o Brasil postular a extradição de Pizzolato com base no Tratado de cooperação com a Itália, que é de 1989. No caso de negativa da extradição—, cogita-se de um mensalão à italiana…. Ou seja, Pizzolato responderia a processo criminal junto à Justiça italiana, por crimes cometidos no Brasil. Convém recordar não existir na Itália o foro privilegiado e o processo criminal pode percorrer três instâncias: 100% de chance de prescrição com relação a Pizzolato.
Mais ainda, esse mensalão à italiana, na verdade, permitiria à Justiça da Itália reexaminar o acerto ou o erro da condenação de Pizzolato pelo nosso Supremo Tribunal. Na hipótese de uma absolvição de Pizzolato nessa proposto mensalão à italiana, o nosso Supremo sairia esculhambado.
A nossa Constituição proíbe, – com cláusula pétrea -, a extradição de brasileiro nato. Outros países também proíbem a extradição dos seus nacionais, exceção feita à Colômbia e com relação a narcotráfico.Essa impossibilidade de extradição de nacionais gerou um problemão para as Nações Unidas, quando da Convenção de Roma e criação do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TPI é competente para julgar, fora os sete países que não aceitaram a sua jurisdição internacional, os crimes contra a humanidade, genocídios e punir ditadores sanguinários. A pergunta que não calava era como fazer para executar as condenações do TPI com extradições proibidas ??
Criou-se, então, o instituto da “entrega” ao Tribunal Penal Internacional. Entrega, — e não extradição. Assim, a extradição ficou reservada às relações entre estados-nacionais e o TPI, ao contrário, apenas solicita a entrega. E tem mais. O Tratado Brasil-Itália exige reciprocidade. Ora, como a Constituição brasileira proíbe por cláusula pétrea a extradição de brasileiro nato cai a reciprocidade e não poderá o Brasil exigir isso da Itália.
Voltando ao mensalão à italiana, temos duas situações diversas. Pelo Tratado, cabe ao Brasil e não a Pizzolato, solicitar, à Itália, a abertura do processo para novo julgamento. Se o Brasil fizer isso, vai passar atestado de república das bananas. Ou seja, submeter o nosso Supremo Tribunal ao supremo vexame de ter uma decisão reexaminada pela Justiça de outro país. Quanto a Pizzolato, ele não vai poder, ao contrário do que propala, postular junto à Justiça italiana um novo julgamento. Isso porque, pelo princípio da territorialidade da lei penal, Pizzolato não cometeu nenhum crime na Itália.
Sobre Pizzolato cumprir pena na Itália trata-se de uma recomendação da Convenção da ONU sobre contraste à corrupção: cada estado-membro deverá aprovar no Parlamento a Convenção e criar a legislação adequada. E de se lembrar que Lula indeferiu a extradição do pluriassassino Cesare Battisti por entender que na Itália o sistema penitenciário não era seguro, no sentido de preservar a vida do encarcerado.
*Walter Maierovitch é jurista e professor, foi desembargador no TJ-SP
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