Laudo foi apresentado durante audiência da Comissão Estadual da Verdade, na Assembleia Legislativa.
Por Carlos Kilian/Agência AL.
“Houve tentativa de montar um suicídio. Não houve enforcamento, mas homicídio por estrangulamento, consumado em local e circunstâncias imprecisas. A vítima foi colocada na posição em que foi encontrada após a rigidez cadavérica haver se instalado ou manietada enquanto o ambiente estava sendo arrumado”, explicou o perito Pedro Cunha, de Brasília, contratado pela Comissão Nacional da Verdade para fixar a causa mortis do ex-prefeito de Balneário Camboriú Higino João Pio, assassinado em 3 de março de 1969 no “camarote do capelão” da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa Catarina, em Florianópolis. A divulgação do laudo pericial aconteceu na tarde de segunda-feira (2), durante audiência pública da Comissão Estadual da Verdade, na Assembleia Legislativa.
Cunha enumerou várias inconsistências do laudo realizado na época e que concluiu pelo suicídio. Higino, conforme o cenário montado pelos herdeiros do Almirante Tamandaré e registrado em várias fotografias, foi encontrado no banheiro da suíte do capelão enforcado com um fio de arame preso ao registro do chuveiro.
“Braços dobrados sobre o abdômen é uma posição antinatural para quem se enforcou, indicando que a vítima já estava rígida quando foi colocada na cena de enforcamento”, declarou o perito, acrescentando que o ex-prefeito foi assassinado por volta da meia-noite, uma vez que a rigidez cadavérica ocorre após oito horas da morte. “Higino não morreu às 11 horas da manhã, mas pelo menos na madrugada do dia 3”, afirmou Cunha.
A perícia também concluiu que o registro d’água utilizado para sustentar o sistema de forca estava a 1,90 m do chão, enquanto o prefeito possuía 1,75 m de altura e com as mãos levantadas atingia 2,20 m. “A sustentação do corpo é incompatível com a aplicação contínua da força necessária para produzir a constrição do pescoço”, justificou Cunha, completando que a vítima foi fotografada com a região plantar do pé tocando o chão. “Um suicídio com suspensão incompleta do corpo pode acontecer, desde que a força sobre o sistema exerça constrição no pescoço da vítima”, ponderou Cunha.
Os peritos ainda detectaram que havia “duas janelas basculantes que davam aceso ao banheiro”, circunstância que permitiu ao(s) assassino(s) entrar e sair da cena sem utilizar a porta, que estava trancada por dentro. Além disso, o arame utilizado produziu um sulco contínuo no pescoço, com hemorragia no mesmo lado do nó. “É uma situação atípica, a gente puxa o nó e a compreensão ocorre no lado oposto, mas quando você está estrangulando alguém a hemorragia acontece também no lado do nó”, observou Cunha, que concluiu que a marca no pescoço “é incompatível com o enforcamento”.
Quem era Higino João Pio
Higino João Pio nasceu em Itapema, era comerciante, pioneiro da hotelaria em Balneário Camboriú, proprietário do Hotel Balneário Pio, localizado na avenida Central, hoje calçadão. “Ele não tinha militância política, os amigos é que indicaram-no para ser candidato a prefeito em 1965, pelo PSD. Um amigo dele, Hildo Noaves, sempre nos dizia, ‘eu o indiquei para ser candidato’”, revelou Julio César Pio, filho da vítima, explicando em seguida que o pai era bom administrador e tinha visão de futuro. “Construiu o muro de arrimo e as avenidas Atlântica e Brasil. Só ouvi falar bem dele”, afirmou, completando que o Higino, cujo mandato expiraria em 1970, “estava contente em sair da política”.
O neto de Higino, Julio César Pio Júnior, afirmou à Agência AL que não conheceu o avô. “As pessoas chegavam na gente e falavam bem dele. Uma vez encontrei um motorista que tinha na carteira uma foto dele do tempo de prefeito, uma foto que nem a família tinha”, declarou Júnior, que assistiu a apresentação do laudo pericial acompanhado do irmão, Cristiano Cabral Pio.
Amigo de João Goulart
Higino era amigo de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe civil-militar de 1964. “Ele tinha uma casa em Balneário Camboriú”, informou César Pio, referindo-se ao imóvel que pertenceu à família Tedesco e que era frequentado pelos Goulart desde a década de 1950, qaundo Jango foi ministro do Trabalho, no segundo governo de Getúlio Vargas. “O Jango saía de casa em um bote a remo com a mulher, Maria Thereza. Ele remando e o povo acompanhando da areia. Era um espetáculo”, descreveu César Pio, revelando que depois o casal se juntava aos moradores “no bar e restaurante Pino e Totti”.
O motivo da prisão
De acordo com relatório elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa em 1997, no âmbito da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída pela Lei 9.140/95, Higino foi acusado de “corrupção administrativa e preso na 4ª feira de cinzas do carnaval de 1969, juntamente com outros funcionários da prefeitura local”.
Segundo esse relatório, lido no início da audiência pública, “os documentos que comprovavam irregularidades teriam sido enviados à Procuradoria Pública em 14 abril de 1967, que os devolveu à câmara de vereadores com a arguição de ilegitimidade dos denunciantes. A câmara, por sua vez, arquivou o processo por 4 votos a 3.
Entretanto, “os denunciantes, através do senhor Heraldo Neves Arruda, encaminharam cópias para a Polícia Federal de Curitiba e à Procuradoria Geral, que teria ficado de decretar a prisão preventiva do senhor Higino. Cerca de um ano depois, o SNI requisitou à Câmara os originais do processo. Insatisfeitos com a morosidade das providências, os denunciantes pediram, através de ofício, a aplicação do AI-5, com o enquadramento no art.4º, solicitando a cassação do mandato e envio à CGI para averiguação de enriquecimento ilícito”.
A opinião dos contemporâneos
A Agência AL transcreve abaixo depoimentos de contemporâneos do ex-prefeito Higino Pio, concedidos à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1996.
“Na qualidade de magistrado, tive conhecimento de que a denúncia apresentada contra aquele cidadão tinha caráter essencialmente político face à liderança e prestigio que ele gozava na cidade”. João José Maurício D’Ávila, magistrado aposentado, juiz em Camboriú na década de 1970.
“As denúncias apresentadas tinham objetivo essencialmente político, eis que as partes ideologicamente conflitantes radicalizavam ao extremo, utilizando-se de acusações infundadas, jamais comprovadas até a presente data”. Álvaro Antônio da Silva, que substituiu o prefeito Higino no cargo de prefeito
“Os ditos fatos ocorreram tão somente em função e/ou consequência de mesquinha perseguição de ordem essencialmente política, fruto de conflitos ideológicos existentes na região àquela época. Embora acusado de corrupção por falta de quaisquer outros consistentes motivos, restou provada sua inocência quanto aos fatos que lhe foram imputados, eis que, em vida, sempre foi integro e de moral irrefutável, tanto na vida publica, quanto privada. Corroboram as presentes afirmativas o fato de que, ao assumir a prefeitura, seu patrimônio era muito maior do que o deixado por ocasião do seu falecimento”. Nilton Kucher, à época deputado estadual.
“A família, receosa de represálias na área de repressão da Comissão Geral de Inquérito (CGI), que ameaçava confiscar o patrimônio do falecido, preferiu silenciar. Durante a fase do inventário, a CGI encaminhou ofício ao Juiz de Direito da Comarca a fim de trancar o andamento do inventário, mas a tentativa resultou infrutífera, pois os elementos carreados para o bojo dos autos favoreceram ao falecido, inclusive, esclarecendo que Higino João Pio era cidadão probo, conceituado no meio social, honesto e político sem mácula”. Zany Gonzaga, advogado da família.
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