A rua e a praça são espaços públicos por excelência. A rua é o passar, caminhar, brincar e, apesar do automóvel, é o lugar do pedestre.
Aquele foi o melhor dos tempos e foi o pior dos tempos. Foi a época da crença e foi a época da descrença. A primavera da esperança e o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós e tínhamos nada diante de nós. Íamos todos para o Paraíso e íamos todos no sentido contrário. Em suma, tudo isso é muito semelhante ao presente, mas foi escrito há mais de um século por Charles Dickens ao iniciar o livro ‘Um conto de duas cidades’. É assim que inicio três crônicas sobre cidades europeias que visitei recentemente cujas impressões divido com os leitores.
Para falar das cidades é preciso vivê-las, portanto ao passar pelas cidades delas temos impressões às vezes imprecisas, pois que não captamos suas essências, mas mesmo correndo esse risco é necessário que delas falemos.
A primeira das cidades que visitei foi Paris, e o que vi foi bem diferente de quando lá estive pela primeira vez no início dos anos 2000. Na época escrevi uma crônica que denominei de ‘Uma bela cidade’ e iniciava com uma indagação: Por que as nossas cidades não são assim?
A questão em parte continua atual, pois Paris ainda corresponde a um modelo de cidade para o Ocidente, o que se deve em grande parte ao simbolismo e às representações que foram sendo construídas sobre a cidade tanto na arte, como na cultura e no urbanismo.
A cidade continua grandiosa na forma e no conteúdo e ainda permanece universal. Nela o mundo parece se encontrar, na gastronomia, no burburinho das ruas onde todas as vozes do mundo soam ao mesmo tempo e roupas coloridas berrantes ou singelas expressam as maneiras e os usos dos muitos povos vindos dos mais longínquos lugares.
Paris é um espetáculo em que se vê de tudo à vontade, expressando as diferenças. A rua é o palco do bulício. A rua e a praça são espaços públicos por excelência. A rua é o passar, caminhar, brincar e, apesar do automóvel, é o lugar do pedestre. As calçadas estão sempre livres, são niveladas e têm a mesma dimensão que a rua. As praças são locais do encontro, de olhar as flores na primavera que chega.
Como em outras cidades europeias, porém, Paris também sofre com a crise. Mesma na Paris glamorosa se vê camelôs nos ‘Jardins des Tuileries’ fugindo de policiais, descuidistas aplicando o golpe da ‘pretinha’ ao redor da Tour Eiffel, algo que antes só era visto nas cidades de países pobres. O excelente serviço de transporte coletivo verificado no início de 2000 se deteriora com estações e trens sujos e mal conservados.
O que ocorre em Paris, como reflexo do que acontece na França, é uma mistura de exclusão étnica, cultural e econômica que segrega nas periferias de Paris parte significativa da população de migrantes africanos, asiáticos e seus descendentes. São pessoas que não apenas vivem sem acesso aos recursos, como também estão profundamente alienadas dos valores e do modo de vida associados ao padrão que poderíamos, a grosso modo, denominar de vida francesa.
Ao que parece, aquela ligação dos habitantes da cidade à cultura e à arte está aos poucos se perdendo, especialmente entre os mais jovens que alimentam grande desencanto com a economia, a política e a educação tradicionais. Aquela cena comum de franceses lendo um livro em toda parte é passado, agora talvez leiam no ‘portable’ e nas redes sociais, mas aparentemente eles falam e estendem os seus meios de comunicação a todos os domínios da vida social, quer estejam na rua, no café ou no museu. Talvez seja um novo jeito do ‘flâneur’ experimentar a cidade.
Quando me dou conta, Paris não é apenas ‘boulevards e jardins’, é também ruas estreitas de paralelepípedos e o barulho de uma máquina de coser que vem dos fundos de uma loja chinesa, enquanto alguém me diz: era um antigo café agora é uma fábrica de confecções.
* José Aldemir é professor da Universidade Federal do Amazonas.
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