Até agora, nestes últimos 50 anos, eram vozes que falavam em nome pessoal, bispos e outros hierarcas que se manifestavam contra e a favor. Agora é oficial: a Igreja Católica, através de seu órgão de cúpula máximo no país, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) julga que o golpe cívico-militar de 1964 foi um “erro histórico”. E reconhece, oficialmente, que houve de ‘setores da Igreja Católica’ que apoiaram os militares e a ditadura.
A CNBB divulgou a nota, Declaração por tempos novos, com liberdade e democracia, a propósito dos 50 anos do golpe e da implantação da ditadura. A CNBB afirma que apesar de alas da igreja inicialmente terem apoiado o golpe, houve mudança de posição após a constatação de atos que vinham sendo adotados pelo regime militar, como perseguição, violência e morte (assassinato) de presos políticos.
A entidade destaca, ainda, que nem todos os danos causados pelo regime militar foram devidamente reparados. “Se é verdade que, no início, setores da igreja apoiaram as movimentações que resultaram na chamada revolução, com vistas a combater o comunismo, também é verdade que a igreja não se omitiu diante da repressão tão logo constatou que os métodos usados pelos novos detentores do poder não respeitavam a dignidade da pessoa humana e seus direitos”, diz a nota da entidade.
Consultor da Comissão da Verdade não vê avanço e cobra mais
Em entrevista coletiva o presidente da CNBB, cardeal de Aparecida do Norte (SP), d. Raymundo Damasceno, acentuou que aos poucos a igreja foi percebendo que a finalidade desse movimento, desse golpe, que foi para preservar o país do comunismo, foi tomando outra direção, tortura, arbitrariedade, repressão a todas as formas de expressão. “Com o passar do tempo, a igreja foi percebendo seus excessos, seus desvios, então a igreja se opôs”, avaliou.
Entrevistado pela Folha, o consultor da Comissão Nacional da Verdade (CNV) Jorge Atílio Iulianelli disse não ver avanços na manifestação da CNBB. ”A nota, infelizmente, não é um avanço, na medida em que a igreja não reconhece a responsabilidade institucional, atribuindo a culpa a apenas uma parcela da instituição”, afirma. Iulianelli é responsável na CNV pela análise do papel da Igreja Católica durante o regime militar. Ele recorda que, três meses após o golpe de 1964, a CNBB divulgou nota elogiando o golpe que, segundo ela, acudiu os brasileiros e freou a “marcha acelerada do comunismo”, sem derramamento de sangue.
A nota da CNBB dizia o seguinte: “Transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do abismo iminente”. E o papa à época, Paulo 6º, também se manifestou a favor do regime.
Iulianelli reconhece, no entanto, que a igreja foi um grande espaço para críticas à ditadura e para o restabelecimento da democracia. “A igreja tem essa situação de ambiguidade. A resistência ao regime teve muito mais força do que a complacência. Mas não reconhecer a complacência é um erro.”
Igreja sempre teve dificuldade de explicar posição dúbia
Tem razão em suas duas ponderações Iulianelli: a Igreja ainda não reconhece sua colaboração institucional à ditadura, mas parte dela foi realmente das vozes mais ativas no combate ao regime militar.
Se por um lado contou com cardeais e bispos como D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota (São Paulo), Vicente Scherer (Porto Alegre), Avelar Brandão Vilela (bispo primaz do Brasil, de Salvador), Luciano Mendes de Almeida (Mariana-MG) Geraldo Sigaud (Diamantina-MG) e outros que elogiaram publicamente o regime, também teve na linha de frente no combate à ditadura religiosos como D. Paulo Evaristo Arns (São Paulo), Hélder Câmara (Recife), José Maria, o Dom Pelé (João Pessoa), os irmãos Lorscheiter, Aloísio (Fortaleza) e Ivo (Santa Maria-RS), Adriano Hipólito (Nova Iguaçu-RJ), Pedro Casaldáliga (São Félix do Araguaia – MT), Tomás Balduíno (cidade de Goiás).
E teve, também, o cardeal arcebispo do Rio, d. Eugênio Salles, que é visto como de posição dúbia: ele não dialogava e expulsava de seu Palácio São Joaquim integrantes da esquerda brasileira, mas ajudou perseguidos de outros continentes que vinham para o Brasil através do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
O fato é que o Brasil esperou 50 anos para que entidades e alguns jornalões começassem começassem a fazer mea-culpa pelo apoio dado ao golpe e a ditadura. O jornal O Globo, por exemplo, fez em editorial no ano passado, quando reconheceu ter errado ao apoiar o regime. A Folha esta semana achou que tinha necessidade de dar alguma satisfação pelo apoio e fez aquela emenda pior que o soneto, um editorial em que diz que as circunstâncias justificavam seu apoio ao golpe.
Bom, no final desta nota, cabe perguntar: e as Forças Armadas, quando vão fazer seu mea-culpa? Reconhecer que erraram ao quebrar a legalidade, derrubar um governo constitucional via golpe, instalar uma ditadura de 21 anos e desculpar-se com a Nação brasileira pelo grande equívoco que cometeram?
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