Minha reflexão de hoje é sobre um dos temas que são objeto de minha atenção ultimamente: os intelectuais e sua importância na atual conjuntura sócio-político-econômica brasileira, marcada pelo conservadorismo e pela supressão de direitos trabalhistas e sociais. Há algum tempo atrás, andei lendo Gramsci e, partindo de seu pensamento, pude tirar algumas conclusões frutíferas sobre o assunto, as quais vinham ao encontro das minhas interrogações. Segundo ele, contrariando um pensamento recorrente de um grande número de pessoas – as quais eu me incluía – intelectual era aquela pessoa inteligente, entendida em algum assunto, com elevado grau de instrução e, impreterivelmente, que usasse terno e gravata. Aliás, permitindo-me um aparte, quão curioso é o fato de que, em nossa sociedade, qualquer pessoa bem trajada, ainda mais com terno e gravata, é logo associada a uma pessoa de inteligência e caráter, alguém em quem se pode confiar. Um intelectual.
Pois bem. Gramsci afirma que o mundo não está cindido entre intelectuais e não intelectuais e, vai mais longe, declarando que qualquer mortal poderá vir a sê-lo, mesmo os que não chegam a vestir um terno. O pensador italiano vaticina que existem duas possibilidades de existência de intelectuais: uma que já é preexistente, já está dada e corresponde justamente aquele percentual de pessoas que descrevi acima, bem instruídas.
A outra parcela, porém, é criada organicamente dentro de cada ramo de atividade, ou seja, cada categoria cria seus intelectuais. E, nessa perspectiva, não apenas as profissões que exigem maior tirocínio mental terão seus intelectuais, mas também aquelas que se caracterizam por um maior esforço manual criarão a sua elite intelectual.
Sim, pasmem, os intelectuais não são oriundos apenas das camadas que desempenham funções intelectuais, mas os trabalhadores manuais também criam seus intelectuais, afinal de contas, nenhuma atividade, por mais repetitiva e desprovida de reflexão que seja, exige um mínimo de raciocínio. Sem contar que, fora de seu exercício laboral, toda pessoa exerce ou pode exercer outras funções que exigirão tomadas de decisões, posicionamentos que, em maior ou menor grau, confluirão para a construção de uma visão de mundo, onde alguns valores são preferidos; outros, preteridos.
Tudo isso me foi fantástico. Ler Gramsci permitiu-me romper com aquela ideia burguesa, seletiva, excludente de que somente os “bem-educados”, os “bem-nascidos” poderiam ser intelectuais. Sim, os trabalhadores braçais, historicamente desprovidos de maior fulgor em seu fazer, também podem ser intelectuais. Também têm a possibilidade de converterem-se em sujeitos históricos concretos pela difusão do seu saber.
Contudo, satisfeita com a (nova) possibilidade, me inquietava ao constatar que os “grandes homens” estão em extinção no nosso tempo líquido. Se mais pessoas têm a possibilidade de serem intelectuais, cadê eles? Onde estão os grandes autores? Os que anunciam novas (e consistentes) teorias e ideias à humanidade? Pois, ao que me parece, salvo algumas poucas exceções, continuamos ainda a seguir, aprender, discutir, ensinar e repassar visões de mundo há muito passadas, sendo que o mundo e suas perguntas muito têm mudado ultimamente. Onde estão os novos intelectuais que darão conta disso?
Ora, juntando o que Gramsci escreveu com o que tenho lido de Foucault, consigo deslindar o intelectual contemporâneo e o seu papel. Foucault diz que o intelectual universal, que descrevi acima e do qual tenho sentido falta, é mesmo um tipo raro em nossos dias, em função de que o mundo está em um estado avançado de acumulação de conhecimento e, sobretudo, porque vivemos realidades complexas e multifacetadas, as quais não podem ser abarcadas por apenas uma ou algumas teorias. A realidade sempre desborda, sempre é mais, sempre tem mais variáveis do que se supõe à priori.
No lugar do intelectual universal surge o intelectual específico, aquele que, em seu recorte espacial/geográfico, na sua prática diária, é capaz de enxergar os acontecimentos com outros olhos, não com o olhar apressado de quem precisa passar pela superficialidade dos acontecimentos em nome da necessidade de trabalhar, trabalhar, trabalhar; mas aquela pessoa dotada de uma dose extra de sensibilidade, que consegue ver a luz de nosso tempo sem deixar-se cegar por ela, visualizando também os pontos obscuros, as penumbras.
Em outras palavras, quem tem a fineza de espírito para perceber as limitações, as potencialidades e, principalmente, aquele que arrisca transformar as limitações em possibilidades de futuras potencialidades e o que percebe nas potencialidades futuras limitações. Esse novo intelectual, felizmente, poderá ser qualquer pessoa. Um trabalhador braçal também, recordo. Poderá não ter o fulgor dos então “grandes homens”. Poderá não ter um séquito de seguidores/bajuladores. Talvez suas conjeturas tenham aceitação de um mínimo número de pessoas. E, certamente, encontrará sérias dificuldades em pôr em prática o que pensa, devido a amarras globais. Mas, mesmo assim, não deixará de ser um intelectual e sua contribuição revolucionária não será minorada.
Diante disso, me vem à mente a singularidade da figura do/a professor/a como intelectual específico, o qual, nos dias de hoje, mesmo diante de toda sorte de desvalorização, mesmo diante da bravata da Lei da Mordaça, a qual, ao contrário do que anuncia, objetiva instaurar a escola de apenas um partido (o hegemônico, obviamente), com efeito nefasto sobre a autonomia e a voz docente, já que tem o intuito, inclusive de criminalizar aqueles cuja atuação seja um antídoto para o analfabetismo político; é ainda ele/a, salvo todas as imposições advindas dos órgãos hierarquicamente superiores, que faz, no “chão da sala de aula”, a educação. E, mesmo intimidado por essa racionalidade que o país está imerso, desacreditado, em muitos ensejos, pelos adolescentes/jovens por não mais corresponder à única fonte de conhecimento, já que este se encontra à mão de qualquer mortal, democratizado em seu acesso; é ainda o professor que influencia, marca, convive com o adolescente/jovem e tem sobre ele alguma (grande) influência. E o que este intelectual específico precisa, hoje, não é dar respostas, dizer o que deve ser feito. Tampouco “conscientizar” alguém. Deve, sim, perceber-se nas teias de poder nas quais está enredado, enxergando que, o que precisa mudar na educação – assim como na sociedade – não é o regime de verdades vigente, mas o processo pelo qual algo se torna ou não verdade, para que então a história escrita nos livros, lida, estudada, aprendida e repassada não seja apenas a história dos vencedores, mas as várias histórias, as múltiplas versões, para que cada um possa perceber qual é a sua história. Qual o/a limita e qual tendo como estandarte é possível avançar.
* Doutora em Educação pela UFSM de Santa Maria-RS.
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