O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, além de não afrontar ou usurpar poder ou prerrogativa do Legislativo e nem evidenciar irracionalidade administrativa, abuso ou excesso, oferece à opinião pública proposições de diálogo e de participação.
Cabe desde logo ter claro que a democracia — com a qual tanto críticos quanto defensores do decreto concordam — não se esgota em edição de leis pelo Parlamento, nem em eleições para designar os representantes. Como processo diário e contínuo, constitui o governo do povo, pelo povo e para o povo.
Por essa razão, pode o Executivo adotar as medidas concretas, em face do que a Constituição e as leis lhe encarregam e lhe permitem, assim como as que seu programa de governo exige. Com isso, resgata compromisso público pelo qual poderia ser politicamente e até judicialmente demandado. De fato, até mesmo a doutrina constitucional reconhece que promessas de campanha podem gerar direitos ao administrado, por elas respondendo o político que as formula e que por elas se elege.
Desse modo, a iniciativa da presidente da República, ao formatar sua administração com o modelo de execução participativa, como lhe parecer adequado ao conjunto das diretrizes de seu governo e do próprio programa do partido pelo qual se elegeu, cumpre também suas obrigações políticas e administrativas.
O ato questionado efetivamente veicula ideias de corte político-ideológico, dando acento à participação social, para que a administração pública receba a vitalidade das aspirações de seus integrantes, muitas vezes alijados da participação direta.
A essência do decreto, nessa linha, é a definição das diretrizes gerais e dos objetivos da PNPS. Quanto às diretrizes, fica patente a preocupação de fazer inserir nas políticas a cargo da administração pública o reconhecimento do direito à participação e parceria com as forças da sociedade civil. Quanto aos objetivos, refletem a opção política de eleger a participação como método de governo. Ou seja, essas diretrizes e esses objetivos caracterizam a metodologia escolhida pelo governo, em um quadro inerente ao regime democrático.
Não se pode negar ao presidente da República o poder de editar decretos para a fiel execução da lei ou impedi-lo de organizar o Poder Executivo, nos limites ditados pela Constituição. A invocação, pelo decreto, do artigo 84, incisos IV e VI, alínea ‘a’, da Constituição, seja como regulamentação da Lei 10.683/2003, seja como regulamento autônomo da organização do Poder Executivo, é inatacável.
O artigo 84 da Constituição confere ao presidente da República o poder de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução e dispor mediante decreto sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.Assim, a presidente está investida da autoridade de imprimir à administração as diretivas que lhe parecerem adequadas.
De outro lado, o artigo 3°, caput, e inciso I, da Lei 10.683/2003, dispôs que a Secretaria-Geral da Presidência da República tem por função, entre outras, assistir o presidente da República no relacionamento e articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo. E no artigo 17 da mesma lei, também invocado, assumiu o Poder Executivo um compromisso formal com a transparência administrativa.
O conjunto dessas normativas mostra que a proposta da presidente da República tem dois significados claros. Primeiro, transformar em ato específico o propósito de privilegiar a participação direta da sociedade na formulação e execução das políticas públicas. Depois, cumprir um programa de governo, naturalmente ligado ao programa do partido pelo qual foi eleita a presidente. Um e outro são fundamentos lógicos necessários para a exata compreensão da razão e forma do decreto.
Outra anotação se mostra decisiva. De acordo como artigo 5º do decreto, os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas. Isso significa dizer que considerá-los como agentes democraticamente necessários é uma obrigação da administração, se as especificidades de cada caso o admitirem ou não o impedirem. Essa ressalva afasta irracionalidades da operação administrativa nas hipóteses em que a participação direta não contribui efetivamente para a melhoria do serviço ou pode prejudicá-lo.
A própria Mesa de Monitoramento de Demandas Sociais, incluída no decreto como modalidade de atuação administrativa em face dos movimentos sociais, se integra na concepção mais moderna de solução de conflitos por via de conciliação e negociação extrajudicial, o que, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, foi erigido como política oficial e recomendação expressa. Ou seja, a adoção desses mecanismos de pacificação, além de afinada com as diretrizes de outros Poderes, reflete mais uma vez uma política de aceitação de forças sociais informais como representação do poder popular, sem qualquer diminuição das instituições legais.
O decreto deve, assim, ser lido nessa perspectiva. As críticas que se elevam contra sua redação podem ter conteúdo técnico-formal, hipótese em que assim deverão ser debatidas. Mas as reservas não terão outro significado se estiverem baseadas em discordância politico-ideológica, quando serão insuficientes para contestação do ato pela via formal.
No entanto, foi com base nesse viés que o Parlamento — tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal —, através de diversos Projetos de Decreto Legislativo (PDC 1491, PDC 1492 e PDC 1494 na Câmara e PDC 117 Senado), teceu duros questionamentos ao decreto.
Um dos argumentos veiculados nesses projetos é o de que arregimentar a sociedade civil em favor da administração subtrairia a base de representação do Parlamento. Essa sustentação escorrega em dois pontos: em primeiro lugar, na insegurança quanto à representatividade real dos parlamentares. Em segundo lugar, na concepção equivocada de uma democracia ainda presa à pura formalidade de escolha dos representantes.
A arguição de que o decreto visa implodir a democracia representativa não tem qualquer fundamento formal, limitando-se a mera crítica defensiva de alguns parlamentares diante da fragilidade de suas bases políticas ou eleitorais. O decreto não impede nem erige obstáculos à participação eleitoral nem tolhe a propaganda ou a mobilização dos partidos. Também não prejudica as demais formas de participação do eleitor pela via do plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mecanismos que permanecem inalterados.
Que o decreto não cria órgão ou cargos públicos ou eleve a despesa pública, a simples leitura desarmada de seus termos desmente a afirmação dos parlamentares que contra ele se insurgiram.
O aspecto mais sintomático de uma ofensiva ideológica está em dizer que o Executivo busca perpetuar sua influência política junto aos movimentos sociais, imunizando-os de possíveis alterações institucionais ou eleitorais. O argumento pode até ser considerado, mas não tem força para imputar ao decreto a pecha de inconstitucionalidade, já que não é vedado ao titular de poder cercar-se de sustentação política bastante a lhe garantir a continuidade do seu exercício. Essa cooptação, própria da atividade politico-ideológica, não viola regra ou normativo algum. Afinal, mesmo em termos formais, representa uma iniciativa legitima do Executivo, que recebeu o mandato da maioria dos eleitores.
As fundamentações expostas nos projetos também não vão além do discurso retórico quando alegam que o decreto inviabiliza a participação dos cidadãos que não se incluem nos mecanismos de participação social. Pode o Poder Executivo arregimentar seus eleitores, em legítima sustentação de suas ações e nos limites da legalidade, sem qualquer lesão aos poderes do Legislativo ou do Judiciário.
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