“Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23b). Não se trata simplesmente de deixar que Jesus e o Pai habitem no mais íntimo de nossas entranhas, preencham o coração e a alma numa paz plena e sem sem ocaso. Tampouco é uma tarefa passiva de quem se limita a abrir a porta para que os amigos entrem e façam de sua casa um banquete eterno. De acordo com a teologia do Quarto Evangelho, uma condição dupla é necessária para a realização dessa festa sem paralelo nas coordenadas da história e da dimensão humana. “Jesus respondeu: ‘se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará’ (...). Quem não me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que vocês ouvem não é minha, mas é a palavra do Pai que me enviou” (Jo 14, 23a; 24).
Como podemos notar, as duas condições apenas referidas precedem e seguem a promessa de que Jesus e o Pai fazem morada em nosso espírito. É como se a promessa representasse o recheio do sanduíche, em meio às duas exigências. Vamos, pois, a essas duas dimensões da condição apontada: amar e guardar a palavra. Evitemos, desde logo, todo e qualquer malentendido. O amor de Deus é livre, incondicional, sem fronteiras e sem restrições de nenhuma espécie. Ele nos ama não em função de um comportamento bom ou mau, mas pura e simplesmente porque somos seus filhos e filhas. Seu amor não está condicionado a nossos méritos pessoais, mas é uma extensão de sua bondade sem limites. Se assim não fosse, seria um amor passível de compra através da moeda das “boas obras”. Não, definitivamente Deus não se presta ao papel de comerciante. Uma vez mais, sua misericórdia se revela absolutamente livre e gratuita, fazendo cair a chuva e brilhar o sol igualmente sobre bons e maus, justos e injustos (Mt 5, 45).
Como entender, então, a condição dupla para que Pai e Filho venham e façam em nós sua morada? Aqui faz-se necessário deslocar o foco da atenção do universo divino para o universo humano. De fato, é somente a partir deste último que as duas dimensões de tal condição – amar e guardar a palavra – podem ser compreendidas. Num primeiro momento, o desamor, turva o espelho de uma existência límpida e transparente, expondo-a à surdez, ao mutismo e à cegueira. Um coração egoísta e egocentrado, fechado à relação com o outro e com o Criador, vale dizer, à mais elementar das condições humanas, com o tempo se resseca e se contrai, asfixiando-se no próprio veneno. Se, como diz Santo Agostinho, o ser humano vem de Deus e vive irrequeito enquanto não volta a Ele (cor inquietum), qualquer isolamento sobre si mesmo deixa de realizar em plenitude o projeto de felicidade para o qual fomos criados.
Tanto nas relações interpessoais e familiares, comunitárias e sociais, políticas e culturais, quanto no longo processo de intimidade com Deus – o desamor mutila e amesquinha o espírito humano, a ponto de levá-lo a uma existência sem qualquer significado, destituída de um sentido mais profundo e essencial. Sem a chama viva do amor, vegetamos como mortos-vivos pela face da terra, espectros que percorrem a trajetória de seus anos como verdadeiros fantasmas. Como náufragos em meio à tempestade, desperdiçamos energias em braçadas desesperadas, sem possibilidade de alcançar o porto seguro. Agarrando-nos a qualquer tábua de salvação, incapazes de distinguir os bens secundários, supérfluos e materiais, por uma parte, das “riquezas” ocultas e eternas no céu, “onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não asaltam nem roubam”, (Mt 6, 20), por outra.
Cegos, nutrimos dentro de nós mesmos zonas escuras e sombrias, selvagens e desconhecidas, onde a luz do sol não penetra. Pouco a pouco, o resultado será um ambiente úmido, de mofo e podridão, sujeito aos vermes que acompanham um cadáver em decomposição. Surdos, deixamos de prestar atenção a tudo o que nos cerca, desde a presença, as palavras e as necessidades do próximo, até a melodia silenciosa, mas rica e povoada, da manifestação de Deus na natureza, no universo e no mais íntimo de nós mesmos. Mudos, desaprendemos a própria faculdade da comunicação humana, a qual, mais do que através da linguagem verbalizada, é antes feita de olhares, sorrisos, mãos estendidas, abraços amigos, canto, música, dança, intercambio de emoções e sentimentos. Embora prolixos em palavras, estas se mostram ocas e insensíveis, despidas de gestos e conteúdo solidários. Mais parecem uma lata rolando em meio ao asfalto: quanto mais vazia, mais estridente será o barulho.
Numa palavra, desamar é abdicar da vida alegre e em plenitude que Jesus nos deseja (Jo 10,10), tornando nossa casa tão fria, calculista e solitária que a presença da Trindade se torna impossível. Não é Deus que se afasta, somos nós que lhe fechamos a porta. Seu amor misericordioso, poderoso e frágil ao mesmo tempo, não força nem obriga, não usa de autoritarismo; quem ama não impõe, propõe. “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3, 20). Até mesmo o amor de Deus, tão forte quanto fiel ao dom da liberdade, nada pode diante um coração empedernido. É o pecado sem perdão de blasfema contra o Espírito (Mc 3, 28). Como no célebre quadro em que Jesus bate a uma porta sem maçaneta, o coração do ser humano só se abre pelo lado de dentro.
O segundo aspecto da condição para que Pai e Filho venham e façam em nós sua morada é guardar a palavra. Faz eco aqui a observação do evangelista Lucas, surpreendentemente repetida duas vezes no início de seu Evangelho: “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2, 19); “E sua mãe conservava no coração todas esas coisas” (Lc 2, 51b). Conservar, guardar, meditar – são verbos que denotam uma atitude de escuta, de meditação e de fé diante dos acontecimentos que nos cercam. Trata-se, basicamente, da experiência profunda da oração e da contemplação, que sabe ouvir com o coração. Quem conserva, guarda e medita busca a sintonia oculta com o mistério da presença de Deus nas entrelinhas dos fatos sociais, políticos e históricos. Torna-se capaz de desvendar, por trás da mera aparência, as digitais de Deus nos embates e combates de um cotidiano rumuroso e turbulento. No segredo do próprio coração, ouve a palavra divina, não proferida mas viva e atuante, na travessia humana sobre a terra. Deparamo-nos aqui com uma larga tradição de Israel, onde Deus caminha com seu povo eleito nas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora.
A exemplo de Maria, quem ama e guarda a palavra, através da ação do Espírito Santo, abre a própria casa à morada do Filho que “se faz carne, arma sua tenda entre nós” e vem revelar a face oculta do Pai. Protótipo do seu povo, Maria é filha da antiga aliança, onde memória e promessa se entrelaçam para destruir toda e qualquer tirania, “derrubar os poderosos de seus tronos e exaltar os humildes” (Lc 2, 46-55), abrindo para estes últimos novas possiblidades na história. Deus irrompe no tempo para desvendar-lhe alternativas renovadas e insuspeitadas. Se, por um lado, a memória nos reporta ao passado e nos faz “beber do próprio poço” (G. Gutierrez), relembrando e resgatando a experiência do êxodo e da libertação do Egito, por outro, a promessa nos aponta para o futuro, para a necessidade de caminhar na esperança da realização final e escatológica do projeto de Deus, colhendo já aqui e agora as alegrias fugazes, mas intensas, do Reino Deus ainda não presente em sua forma definitiva e eterna.
Em contraste com uma leitura sociológica dos fatos históricos (legítima e necessária), amar e guardar a palavra traduz uma visão de fé onde tais fatos, por mais contraditórios e absurdos que possam parecer, escondem um significado salvífico que costura seus fios desconexos. Em lugar do vazio e do tédio, da orfandadade e da solidão, que atualmente tomam conta de tantas pessoas e de tantos grupos, nos damos conta que Jesus e o Pai, pela ação do Espírito, vêm sim, e fazem sua morada dentro de nós, transmitindo-nos serenidade, paz e conforto. Com Maria, aprendendemos a ler a história com os olhos de Deus e a esperar em Deus com os olhos de quem está a caminho; ou também, aprendemos a escutar o clamor dos pobres com os ouvidos de Deus e a escutar a palavra de Deus com o ouvidos dos pobres; e ainda, a sintonizar a órbita de Deus com o coração dos pequenos e a compadecer-sediante destes com o coração de Deus.
Roma, Itália, 20 de mao de 2014
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