segunda-feira, 31 de março de 2014

A operação de guerra que garantiu a posse de Jango com o parlamentarismo - Luis Nassif

Jango24_Brizola

Por volta de agosto de 1961, o ministro da Fazenda Clemente Mariani viajara para Punta Del Este, presidindo a delegação brasileira que iria discutir a Operação Pan-Americana e a Aliança para o Progresso. Foi na mesma ocasião em que o secretário de Estado norte-americano Douglas Dillon esteve de passagem por Brasília, encantando-se com Jânio. Ainda não se tornara público, mas Mariani estava demissionário, aguardando apenas que Jânio indicasse um substituto.

Depois do almoço no Horto Florestal, em São Paulo e dos serviços prestados a seu governo na negociação da dívida externa, Jânio Quadros e Pedroso D’Horta tornaram-se grandes amigos de Walther Moreira Salles.

Pedro D’Horta sabia da resistência do embaixador em aceitar um novo cargo público. Por isso, quase ao final do encontro de Punta Del Este, ligou para alerta-lo:

– Walther, na volta do Chile, o Clemente Mariani vai pedir demissão, devido a desentendimentos com o presidente. É quase certo que Jânio vá convida-lo para substitui-lo. E você já sabe como ele é persistente e teimoso. Se não quiser realmente ser ministro, e se sente incomodado com esses rumores, é melhor sair do Rio.

Na ocasião, corria o nome de Walther e o de Stelita Lins para o cargo.

O embaixador julgou melhor acatar o conselho, e foi com a família se esconder na fazenda Santo Aleixo, de Pedro di Perna, em Itatiba (SP).

Terminada a reunião de Punta Del Este, em vez de Mariani, foi o próprio Jânio quem surpreenderia o país, condecorando Che Guevara, trancando-se um fim de semana inteiro em um apartamento famoso no Rio, com a atriz Tônia Carrero, e renunciando em seguida.

Anos depois, o poeta Augusto Frederico Schmidt morreria no mesmo apartamento, quando declamava poemas para a mulher de um líder lacerdista.

Jango estava na China e havia enormes resistências à sua posse. Desembarcou direto em Porto Alegre onde seu cunhado Leonel Brizola já tinha deflagrado o Movimento pela Legalidade.

O embaixador permanecia na Santo Aleixo, acompanhando os acontecimentos pela imprensa. Como não avisara a ninguém de seu paradeiro, foi com surpresa que, certa manhã, recebeu a visita de Rubem Berta, presidente da Varig, que o descobrira graças a uma indiscrição da secretária de Pedro Di Perna.

– O presidente quer vê-lo – informou-lhe Berta.
– Qual presidente?, indagou o embaixador, ainda tão perplexo com a renúncia quanto o restante do país.
– O presidente Goulart.
– Terei muito prazer, assim que ele puder, porque sei que está isolado em Porto Alegre.

O embaixador conhecera Jango na época em que ambos mantinham grandes relações com o Banco do Brasil – o embaixador como diretor do BB, Jango como cliente assíduo da Carteira de Crédito Rural. Depois, ajudou a remover alguns obstáculos que poderiam atrapalhar sua posse na vice-presidência da República. Pouco antes da posse, alguns próceres do PTB foram informados que ele estava pendurado em um empréstimo junto ao Banco do Brasil, o que poderia dar margem a explorações políticas.

San Tiago ligou para o embaixador:

– Walther, Jango deve 15 milhões de cruzeiros ao Banco do Brasil. Você poderia emprestar dinheiro para ele cobrir-se junto ao banco? Depois, o BB te empresta de volta.

Os procedimentos bancários foram normais, com a mãe de Jango entregando ao Banco Moreira Salles uma carta oferecendo bens em hipoteca. O empréstimo acabou sendo pago normalmente. Mas o banco Moreira Salles não fez questão de cobrar a contrapartida. E, a bem, da verdade, nem Sebastião Paes de Almeida, presidente do BB à época, fez questão de lembrar a promessa feita.

O embaixador foi tirado de suas lembranças por uma declaração inesperada de Berta:

– Ele quer vê-lo hoje.
– Mas de que maneira?
– Estou encarregado de providenciar sua ida ao Rio Grande do Sul.
– Mas como será possível? – insistiu o embaixador.
– Disto eu me encarrego, com toda a segurança. Mas primeiro precisamos ir a São Paulo.

O embaixador conhecera Rubem Berta na época em que ocupou a embaixada de Washington. Na ocasião, acompanhou-o nas negociações para a compra e financiamento dos primeiros Boeings 707 da Varig, e aprendeu a admirar sua tenacidade e capacidade de trabalho.

– E quando voltamos de lá?
– Hoje mesmo.

Chegaram em São Paulo à 1 da tarde e foram direto ao hangar da Varig no aeroporto de Congonhas. Atendendo a um pedido de Berta, Perna, que os acompanhava, retornou sem entrar no hangar. Ao chegar, o embaixador foi apresentado a uma figura bonita, de porte militar.

– Este é o general Amaury Kruel.

No aeroporto, o embaixador deu-se conta de que a segurança prometida por Berta devia-se mais ao senso profissional com que comandantes acalmam passageiros em noite de tempestade, do que propriamente a uma análise objetiva da situação.

– Você não sabe o que aconteceu – disse-lhe Berta. Vamos ter de esperar cair a noite para partirmos, pois os voos para o sul foram proibidos.

Para driblar a proibição, armou-se um estratagema que consistia, primeiro, em aguardar a noite e fazer levantar voo um avião com destino ao norte do país. Apenas a tripulação estava autorizada a decolar. Na ponta da pista, o piloto alegaria defeito no fechamento da porta, para retornar ao hangar. Nesse momento, abriria a porta e os três – Walther, Berta e Kruel – atravessariam o pátio correndo e entrariam no avião, rezando para não serem percebidos.

O embaixador passou o resto do dia conversando com Kruel e Berta, tirando dúvidas sobre o sucesso da operação pega-avião e da resistência jango-brizolista.

O Rio Grande estava virtualmente isolado e a belonave necessitaria voar pela costa, para contornar a proibição de voos em direção ao sul. Eram três autênticos revolucionários, um deles, o embaixador, tão neófito em experiências do gênero, que Kruel julgou mais prudente que fosse na frente, na hora de embarcar.

– O senhor vai em primeiro lugar, pois se houver luz não haverá tempo de apanhá-lo. Eu, que tenho experiência, vou em seguida.

O embaixador relutou, mas não muito. Foi o primeiro a entrar, seguido de ambos. Partiram para Porto Alegre num DC3 voando de luzes apagadas, numa viagem demorada, que terminou no campo de aviação de Porto Alegre, iluminado por faróis de automóveis. Dali seguiram para o Palácio de Piratini, sede do governo estadual.

Kruel desapareceu na chegada e o embaixador foi conduzido por Rubem Berta à presença de Goulart. Eram 2 da manhã.

Jango explicou-lhe rapidamente sua estratégia para tomar posse:

– Estou aceitando a reforma da Constituição criando o parlamentarismo. Tancredo Neves será o primeiro ministro, e seu companheiro de viagem, general Kruel, o chefe da Casa Militar. E eu queria que o senhor fosse o ministro da Fazenda. Já conversei com Tancredo, que é seu amigo, e está de acordo.

O embaixador procurou objetar. Argumentou que haveria melhores nomes, sobretudo porque, com o parlamentarismo, o presidente teria que recorrer a nomes de partidos.

Jango não aceitou os argumentos:

– Não. O Ministério da Fazenda precisa ser ocupado por pessoa de absoluta confiança não apenas do primeiro ministro, mas também do presidente.

A confiança de Jango no embaixador decorria das inúmeras referências feitas a seu respeito por Vargas. O embaixador resistiu mais um pouco, mas foi demovido por um argumento definitivo:

– O senhor foi o negociador nos Estados Unidos do plano de estabilização do governo Jânio Quadros. Nós vamos continuar a observar todos os termos do plano e seu nome no ministério será a garantia junto às autoridades norte-americanas e ao mercado financeiro.

O ministro Walther Moreira Salles tornar-se-ia o principal avalista do acordo negociado pelo embaixador Walther Moreira Salles. O convite foi aceito. O embaixador entendeu que não aceita-lo significaria um desserviço ao país.

Terminada a conversa, o embaixador virou-se para Berta:

– Agora você vai me providenciar a volta para Campinas.

– Impossível, Walther. A FAB está com grande vigilância e nós não podemos correr o risco de perder um avião – declarou, com a objetividade típica de um aeronauta, que jamais se preocupa com detalhes.

– E eu dentro! – emendou o embaixador, lembrando que o detalhe era ele.

– Mas não se preocupe. Vou providenciar um avião para partir de madrugada para Buenos Aires. De lá você pega um voo de carreira internacional que pare no Rio, em São Paulo ou Campinas.

Inexperiente em manobras revolucionárias, o embaixador comportava-se como um turista acidental, que vislumbrava empecilhos intransponíveis à sua viagem.

– Agradeço, mas não tenho nem passaporte nem carteira de identidade. E nem dinheiro.

Goulart, que acabara de chegar da China, tinha dólares da viagem. Emprestou-lhe US$200,00. Brizola, que chegara com o cunhado, resolveu o problema da carteira de identidade. Em plena 4 da madrugada tiraram fotos que serviram para preparar a nova carteira de identidade.

Apesar das ideias de Brizola, que o embaixador considerava anacrônicas e superficiais, não havia como não admirar sua bravura e liderança. Que Kruel, que Machado Coelho, que nada! O comandante de fato da resistência era mesmo Brizola.

Avião levantou voo em pleno frio de agosto, levando um único passageiro enrolado em cobertores, dormindo nos bancos traseiros. Fez escala em Montevidéu e parou em Buenos Aires.

Para sua sorte, havia um voo da Alitália com destino a Roma, com escala em Campinas, que saía às 10 da manhã. O embaixador comprou escova de dente e o aparelho de barba e barbeou-se no próprio banheiro do aeroporto. E – para completar a incrível sucessão de fatos absolutamente inéditos na sua carreira, que aquele dia agitado lhe proporcionara – embarcou sem gravata.

Chegou a Campinas por volta da hora do almoço e entrou na fila em frente do guichê da Polícia Federal para a apresentação dos documentos. Na sua vez, o policial reconheceu-o:

– O senhor é o embaixador Moreira Salles.
– Sou eu, sim – respondeu o embaixador, seguro por fora, apreensivo por dentro.
– Mas seu retrato na identidade está fresquinho, molhado.

Quando o embaixador pensava que completaria ali seu curso intensivo de revolucionário – sendo detido –, o policial relaxou:

– Tudo bem. Acabo de ouvir pelo rádio que o senhor é o novo ministro da Fazenda, aprovado pelo Congresso em Brasília.

Jango havia conseguido emplacar seu gabinete, formado por um time do porte de Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Virgílio Fernandes Távora, San Tiago Dantas, o general Segadas Vianna no Ministério da Guerra e o brigadeiro Clóvis Travassos na Aeronáutica, Amaury Kruel no Gabinete Militar e Hermes Lima no Gabinete Civil. E as ondas hertzianas encarregaram-se de poupar o embaixador de um vexame.

O embaixador embarcou de Campinas para Itatiba, e já havia um sem-número de telefonemas de amigos cumprimentando-o. Os primeiros a falar com ele foram Horácio Lafer, Augusto Frederico Schmidt e Roberto Marinho. Pouco antes de sua chegada, um amigo exaltado cobriu de impropérios a senhora de Pedro Di Perna, não acreditando que o embaixador não estivesse em casa. Nenhuma novidade na malcriação: era o senador Arnon de Mello.

Sem contar a curta experiência revolucionária em 1932, quando foi parar na delegacia da paulista São João da Boa Vista por engano – por ter levado paulistas de Poços para São João – foi a única experiência revolucionária do nosso embaixador. Mais raro ainda: foi a única vez em que foi visto em público sem gravata.

A posse do gabinete deu-se em 8 de setembro de 1961. Para a aprovação desse Conselho de Ministros presidido por Tancredo Neves, votaram “sim” 259 congressistas e “não” 10 congressistas. Entre os presentes à cerimônia estava o deputado Raul Pilla, uma das figuras mais respeitáveis do Congresso, defensor intransigente do parlamentarismo. Era uma figura física impressionante, e de enorme integridade moral.

Mas nem a dimensão pública de Raul Pilla foi suficiente para convencer o embaixador de que o Brasil estava preparado para conviver com o parlamentarismo.

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